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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 661/2019

ACÓRDÃO Nº 661/2019

Processo n.º 899/2018

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

 

 

I. Relatório

 

1.      Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), em que é recorrente A. e recorrido B., Lda., foi pelo primeiro interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do número 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal da Relação, em 11 de setembro de 2018, que julgou inadmissível o recurso então interposto.

2.      No que releva para o presente recurso, inicialmente o ora recorrente apresentou, no juízo de execução, reclamação de nota discriminativa e justificativa de custas de parte por não concordar com o teor dos valores contabilizados. Tendo a mesma sido indeferida por despacho de 11 de outubro de 2016, interpôs recurso deste, que foi julgado legalmente inadmissível, por despacho de 23 de junho de 2017, em razão de o valor da nota de custas atacada ter um valor de €2.723,40, sendo, por isso, inferior ao montante correspondente à 50 UCs – que equivale ao total de €5.100,00 – e que consiste no limiar mínimo estabelecido pelo artigo 33.º, n.º 3, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, para a recorribilidade nesta matéria.

 

3.    Não se conformando, interpôs recurso para o TRC em que questionou a legalidade e a constitucionalidade do referido dispositivo por violação da competência legislativa da Assembleia da República e do acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva. Por meio de decisão singular, proferida em 15 de maio de 2018, concluiu-se que não houve ofensa no plano da legalidade e que inexistem as invocadas inconstitucionalidades e, assim, não se admitiu o recurso.

4.    Perante tal decisão, o ora recorrente apresentou reclamação para a conferência do TRC, alegando, em síntese, no plano da constitucionalidade, que a matéria relativa às custas de parte tem “natureza restritiva do direito fundamental de acesso aos tribunais” e, por esse motivo, “deve ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP” e também “deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP” (fls. 41). Além disso, sustentou que a norma em questão fere o “direito ao processo equitativo” consagrado no artigo 20.º da Constituição (fls. 41, verso).

Nesta sequência, o TRC, em conferência, concluiu, no acórdão de 11 de setembro de 2018, que não se verifica a violação dos preceitos constitucionais invocados, “uma vez que não se trata de matéria de competência da Assembleia da República (nem absoluta, nem relativa – cf. artigos 164.º e 165.º, da CRP). Bem como não se mostra violado o artigo 20.º da CRP”.

E prossegue aquele decisum a quo:

 

“Não está em causa impedir o acesso ao direito e aos tribunais, mas apenas e tão só o de regular o modo como o mesmo se processa. O legislador ordinário fixa os termos e condições em que tal direito é exercido – sendo inconstitucionais as normas que o impeçam ou dificultem – sendo lícita (e generalizada) a prática de delimitar os termos de recorribilidade de uma decisão judicial, para um tribunal superior – de acordo com o valor dos interesses/questão em apreciação” (fls. 74, verso).

 

Com isso, o acórdão julgou inadmissível o recurso em causa.

Notificado desta decisão de indeferimento, vem o recorrente interpor o presente recurso de constitucionalidade.

 

5.      O respetivo requerimento de recurso contém o seguinte (fls. 79-85):

 

«A., recorrente melhor identificado nos autos de processo à marguem mencionados, em que é recorrida B., LDA., também aí melhor identificada, notificado do Acórdão de 11 de Setembro de 2018 que julgou inadmissível o recurso interposto em função do que se indeferiu a reclamação apresentada vem, por não se conformar, interpor recurso através do presente

REQUERIMENTO DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO JUNTO DO

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

Ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, al. b) e n.º 2. 71º, n.º 1, al. b) e 2, 72º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 75º e 75º-A, n.º 1 e 2, todos da Lei nº 28/82 com as alterações introduzidas pela Lei nº 85/89 de 7/09, para o que junta o respetivo requerimento. em virtude da inconstitucionalidade da norma que se identifica e subjacente à interpretação e decisão dada ao presente caso sub judice, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, junto dos quais os vícios foram invocados, dando-se assim, para os devidos efeitos, por reproduzidos os respetivos fundamentos e conclusões aí apresentados.

 

EXMOS SENHORES

JUIZES DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

 

A., na qualidade de recorrente nos autos à margem referenciados, não se conformando com o Acórdão proferido pelos Juízes Desembargadores que compõem o Tribunal da Relação de Coimbra, 1ª Secção, em 11/09/2018, vem interpor recurso através do presente requerimento, junto do Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 71º, n.º 1, al b) e 2, 72º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 75º e 75º-A, n.º 1 e 2, todos da Lei nº 28/82 com as alterações introduzidas pela Lei nº 85/89 de 7/09 , em virtude da inconstitucionalidade da norma que se identifica e subjacente à interpretação e decisão dada ao presente caso sub judice, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, junto dos quais os vícios foram invocados aquando da reclamação dada aos autos ao abrigo do art. 643º do CPC, dando-se assim, para os devidos efeitos, por reproduzidos os respetivos fundamentos e conclusões aí apresentados.

Neste sentido, considera-se inconstitucional,

- a interpretação do art. 33º, n.º 3 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra sobre a reclamação que decidiu que "cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC", assim considerando que tal norma não infringe quaisquer disposições ou princípios constitucionais, nomeadamente, as disposições e os princípios indicados pelo recorrente.

Ora.

O recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que foi indeferido, sendo que desse despacho apresentou reclamação por apenso, devidamente instruída nos termos do art. 643º, nº 3 do CPC.

Por despacho do Juiz Relator do Tribunal da Relação de Coimbra foi indeferido o requerimento de reclamação, sobre o qual se requereu que recaísse um acórdão submetendo-se o processo, para o efeito, à conferência por se entender que o recurso referente à nota de custas de parte não está sujeito às exigências de valor fixadas no art. 629º, nº 1 do CPC até porque, de forma similar, a decisão que condene em multa está também ela consagrada no mesmo segmento da alínea e) do n.º 2 do art. 644º do CPC e o RCP impede expressamente que a multa ascenda ao valor de sucumbência fixado em tal norma.

A este propósito deve atender-se conjugadamente ao disposto nos artigos 27º, nº 2 e nº 6 do RCP e aos artigos 629º, nº 1 e 644º. nº 2, al. e) do CPC para se obter uma interpretação que tenha em conta a unidade do sistema jurídico, uma vez que se afigura indubitável que o legislador pretendeu manter a possibilidade de recurso das decisões que aplicam multas ou cominam outra sanção processual e manteve no novo CPC a norma do art. 644º, nº 2, al. e), com nova formulação para abranger quer a multa quer outra sanção processual - e tal interpretação não pode deixar de ser a de não sujeitar o recurso de multas e outras sanções às exigências do valor da ação e da sucumbência previstas no artº 629º, nº 1, do CPC, tal como sucede na litigância por má-fé.

Ora, o fundamento do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra estriba-se na inexistência de contradição entre o art. 33º, n.º 3 da Portaria e o artigo 644º. n.º 2, al. e) e g) do CPC pois "aqui apenas se regulam os casos designados como de "apelação autónoma", uma vez que as demais, nos termos do seu n.º 3, só podem ser intentadas com a decisão que ponha termo à causa".

Mas dali não resulta que o recurso seja sempre admissível, mas apenas que, quando o for, é o respetivo regime o consagrado no n.º 2.

Uma das questões prévias da admissibilidade de recurso é, por exemplo, a de que a questão a apreciar tenha valor para tal - artigo 629º, n.º 1, do CPC, apenas a isso constituindo exceção os casos previstos nos seus números 2 e 3, o que não é o caso.

Assim, não se verifica a aludida contradição entre o supra referido artigo 33º, n.º 2 e o 644º do CPC."

Por conseguinte, a decisão proferida fez depender o recurso da verificação dos pressupostos ínsitos no art. 629º do CPC para assim indeferir o recurso interposto.

A entender-se como aludido no acórdão proferido, tal equivaleria à completa impossibilidade de recurso, uma vez que se mostra legalmente impossível a existência de multa ou taxa sancionatória excecional (nelas se incluindo as custas de parte) que atinja o referido montante aludido no art. 629º dado que, como resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 27º, a multa ou penalidade só pode ascender a uma quantia máxima de 10 UC, ou seja, a um valor máximo de 1.020.00€, e a taxa sancionatória excecional, nos termos do art. 10.º do RCP, só pode ascender ao máximo de 15 UC, a um valor máximo de 1.530,00€, sendo. pois, tais valores máximos sempre inferiores a metade da alçada da 1ª instância.

Por conseguinte, o recorrente não se conforma com o teor do Acórdão proferido que tem como único fundamento a norma do n.º 3 do artigo 33º da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril, que considera inconstitucional.

Vejamos,

Nos termos do disposto no artigo 529º, nº 1, do CPC, as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. Acrescenta o artigo 533º, n.º 2, do CPC que as custas de parte abrangem, designadamente, as taxas de justiça pagas, os encargos efetivamente suportados pela parte, as remunerações pagas ao agente de execução e as despesas por este efetuadas, os honorários do mandatário e as despesas por este efetuadas, ou seja, englobam o somatório das despesas suportadas com a lide pelas partes, incorrendo no seu pagamento a parte vencida na proporção do seu decaimento (artigo 533º, n.º 1 do CPC).

O CPC remete para o RCP a disciplina das custas de parte, a qual se encontra prevista nos respetivos artigos 25º e 26º (artigo 533º. n.º 1, do CPC). Por sua vez, a Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março (diploma que regulamenta o RCP) concretiza esta matéria no Capítulo V. com a epígrafe "Custas de parte".

A matéria relativa a custas de parte está regulada nos artigos 30º a 33º da Portaria. E não se entende que ao regular a matéria das custas de parte nestes artigos o legislador se esteja a afastar daquilo que referiu ser seu propósito com a publicação da Portaria - a regulamentação do modo de processamento das custas processuais. as quais integram as custas de parte.

A semelhança nos diplomas é notória, especialmente quando o nº 1 do artº 31º da Portaria repete o que já constava do nº 1 do artº 25º do RCP: o nº 1 do artº 32º concretiza o que já se entendia relativamente à alínea d) do nº 2 do art.º 25º do RCP; o nº 1 do art.º 30º da Portaria reforça o artº 30º do RCP, do qual já resultava que as custas de parte não eram incluídas na conta.

A reclamação judicial da nota descritiva e justificativa das custas de parte, só foi prevista na Portaria 419-A/2009 pois a matéria da reforma e da reclamação da conta de custas de parte não se encontra prevista no RCP.

Tal matéria apenas se encontra abordada na Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março, que "regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação. pagamento, processamento e destino das custas processuais. multas e outras penalidades" e cujo artigo 33º prevê a reclamação da nota justificativa, a apresentar no prazo de 10 dias, devendo posteriormente ser decidida pelo juiz em igual prazo. Caso o valor da nota seja superior a 50 Uc, prevê-se o direito a recurso em um grau desta decisão. Além disso. nos termos do mesmo artigo, são ainda aplicáveis subsidiariamente as disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31º do RCP.

Do exposto decorre que o legislador nada disse em sede legislativa - ou seja, no RCP - acerca da possibilidade de reclamação da nota justificativa das custas de parte, tendo sujeitado regulamentarmente, através da Portaria n.º 419-A/2009. de 17 de Abril, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março, a impossibilidade de recorrer da decisão que incidir sobre essa reclamação, sendo justamente sobre a norma que resulta desta modificação que incide a presente reclamação, nomeadamente quando se refere. no n.º 3 do mencionado normativo que "Da decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 Uc."

Ora,

O preceito em causa não se traduz na mera regulamentação do diploma legal que aprovou o RCP. Trata-se de um diploma inovador com regras que não constituem mero desenvolvimento ou pormenorização das regras mais gerais previstas no RCP estabelecendo, de uma forma completamente inovadora, o regime relativo à impugnação por via do recurso da decisão que julga a reclamação da nota de custas de parte, pelo que deve ser considerado inconstitucional.

Resta aferir a forma de conciliar a condição de recurso plasmada no n.º 3 do art. 33º da Portaria - "se exceder o valor de 50 UC' - com o art. 644º do CPC que refere, no seu n.º 2, al. e) e g), sob a epígrafe "Apelações autónomas" que "Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância (...) e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção: (...) g) De decisão proferida depois da decisão final."

Neste sentido, é patente a contradição entre o n.º 3 do art. 33º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17-04, que não admite o recurso da decisão proferida sobre a reclamação das custas de parte caso o valor da nota apresentada não exceda 50 UC e a norma ínsita no CPC, que admite o recurso de apelação da decisão que "comine outra sanção processual" (al. e) do n.º 2 do art. 644º do CPC), bem como daqueloutra que seja "proferida depois da decisão final (al. g) do n.º 2 do art. 644º do CPC).

In casu é manifesta a contrariedade entre o teor do n.º 2, do art. 33º, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17-04 e o disposto no art. 644º, n.º 2, al. e) mas especialmente al. g), uma vez que qualquer decisão do despacho que incidiu sobre a reclamação da conta de custas é proferida depois da decisão final.

Tratando-se, como se trata, de matéria ínsita numa portaria, tal contradição é ilegal por ser inadmissível que contrarie legislação com valor superior, no caso, o CPC mas também inconstitucional por violação da Lei Fundamental.

De facto entendemos que a norma do n.º 3 do artigo 33.º da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril, além de violar a lei expressa viola igualmente, no que ora importa analisar, a Lei Fundamental.

Numa primeira instância, as leis apresentam uma hierarquia. uma ordem de importância, na qual as de menor grau devem obedecer às de maior grau. Eis a hierarquia das leis em Portugal: Lei Constitucional. Tratado internacional. Lei ordinária. Decreto-Lei. Decreto regional, Decreto regulamentar. Decreto regulamentar regional, Resolução do Conselho de Ministros, Portaria. Despacho. Postura pelo que a lei e o decreto-lei são atos legislativos sendo a portaria um ata emitido pelo poder administrativo.

As leis e os decretos-lei têm o mesmo valor e são aprovados pelos órgãos legislativos, de acordo com os poderes conferidos pela Constituição da República Portuguesa e, por sua vez. a portaria é um ata do poder administrativo, que a Constituição atribui exclusivamente ao Governo. que é aprovado por um ou mais Ministros, em nome do Governo, e que regula em pormenor um determinado assunto.

Em termos de hierarquia, a lei e o decreto-lei têm o mesmo valor na ordem jurídica portuguesa. Em caso de conflito. aplica-se, entre eles. o que for mais recente ou o que contiver uma regra que, por ser mais específica. se adequa melhor ao caso concreto. Já a portaria tem valor inferior às leis e aos decretos-lei e não os pode contrariar.

Numa segunda instância, o recorrente invoca a inconstitucionalidade do art. 33º, n.º 2 por violação dos artigos 112º, 161º, 198º e 20º da CRP, argumentos que o Tribunal da Relação não acolheu.

Na verdade, a imposição de condições de acesso dos cidadãos aos Tribunais para defesa de direitos, só pode ser estabelecida através dos atos legislativos previstos no artigo 112º n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa - leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais, não sendo admissível que tal matéria seja regulamentada através de portaria.

Assim sendo, a imposição de restrições de acesso dos cidadãos aos Tribunais por portaria, condicionando o recurso ao valor da nota de custas de parte, além de violar a norma do artigo 112º, n.º 1, viola também as normas dos art. 161 º (competência política e legislativa da Assembleia da Republica) e 198º (competência legislativa do Governo), bem como o art. 20º de acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, todos da CRP, e o princípio da separação de poderes.

Na verdade,

O direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva não se compadece, por ser discriminatória e desproporcionada, com uma restrição de acesso ao recurso judicial com base no valor da ação ou critério da sucumbência.

O acórdão do Tribunal da Relação, ao decidir nos termos decididos, violou princípios e direitos fundamentais consignados na Constituição da República Portuguesa, desde logo, o princípio da não discriminação no acesso ao direito e aos tribunais.

Mais, o artigo em causa é materialmente inconstitucional por, ao arrepio do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, conduzir na prática a um tratamento desigual em razão da sua situação económica.

Por outro lado, este preceito é inválido por se recusar o direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, concedido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e violar o princípio constitucional da proteção jurisdicional efetiva, conduzindo, assim. a uma denegação da justiça por insuficiência de meios económicos.

Todos os cidadãos são iguais perante a lei, a todos sendo assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais, para defesa dos seus interesses legítimos.

A ordem jurídica é uma só, pelo que fica sem justificação plausível o facto de se reconhecer o duplo grau de jurisdição penal e recusá-lo na jurisdição cível. A previsão de uma ordem de tribunais ou hierarquia dos tribunais judiciais. impõe a existência de pelo menos um recurso dentro dessa hierarquia. Não podemos consentir, em qualquer caso, que possa haver um qualquer obstáculo de natureza económica, que inviabilize o direito de recorrer.

Acresce que, o acórdão proferido viola, ainda, o princípio do Estado de Direito, plasmado no art. 2.º da C.R.P., a interpretação da lei ordinária que não permite um recurso jurisdicional de reação contra «erros judiciários» ou contra violações jurisdicionais dos direitos fundamentais;

Ora.

A matéria em questão continua a ser regulada por portaria, concretamente a Portaria n.º 419-A/2009. Cabendo a matéria em discussão na esfera de competência exclusiva da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.º l, do artigo 165º da Constituição, em conjugação com o respetivo artigo 20º, n.º 1, dificilmente se entende que a matéria das custas de parte continue a ser regulada pela sobredita portaria.

De facto, possuindo a temática das custas de parte uma natureza restritiva do direito fundamental de acesso aos tribunais e tendo em conta o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência nacionais como sendo este um direito análogo a um direito, liberdade e garantia (nomeadamente. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada. vol. I. 2.ª ed. Wolters Kluwer, Coimbra Editora, 2010, p. 304 e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 237/90, de 3 de julho de 1990, disponível em http://www.tribunalconstitucional.ptltc/acordaos) será de concluir pela aplicação do regime jurídico a estes aplicável, pelo que a matéria em apreço deve ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP - "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."

É consabido que o legislador pode remeter para portaria a regulamentação de aspetos não restritivos de direitos, liberdades e garantias ou outros aspetos, desde que os mesmos se encontrem devidamente balizados pela respetiva lei habilitante. Contudo, do Regulamento das Custas Processuais não consta qualquer norma habilitante que permita a regulamentação da matéria das custas de parte pelo que, estando em causa uma limitação a um direito fundamental como é o caso do acesso ao direito e aos tribunais, a norma em apreço padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, conforme o disposto no art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP em conjugação com o art. 20.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

A questão em análise não é a relação entre a competência legislativa da Assembleia da República e a competência legislativa do Governo, mas sim a distinção entre a função legislativa e o exercício da função administrativa. Nestes termos, o objeto de análise é a constitucionalidade do exercício da função administrativa, através de ato regulamentar em face da reserva relativa de competência da Assembleia da República e, nessa sequência, da reserva de lei prevista no art. 18.º, n.º 2 da CRP, razão pela qual, estando em causa a regulação apenas por portaria da reclamação da conta de custas de parte terá, forçosamente, de se concluir pela inconstitucionalidade do exercício da função administrativa por violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República em conjugação com o direito de acesso aos tribunais.

Em suma, tendo em conta que a matéria da reclamação das custas de parte é unicamente regulada por portaria e estando em causa uma restrição ao direito fundamental ao acesso ao direito e não existindo uma habilitação específica para o efeito no RCP nem em qualquer outra lei, a norma constante do n.º 3 do artigo 33.º da Portaria padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

Atento o exposto, a interpretação adotada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, para além de ilegal por violação dos art. 644º do CPC e 27º do RCP, é inconstitucional por violação do princípio do direito ao processo equitativo consagrado no art. 6º da Convenção dos Direitos do Homem e nos art. 112º, 161º, 198º, 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa, pelo que pelo que o artigo em causa, com o sentido que lhe é atribuído, estabelece uma restrição intolerável ao direito de recorrer, bem como uma discriminação intolerável e arbitrária.

As questões da inconstitucionalidade equacionadas foram suscitadas no requerimento de reclamação dado aos autos nos termos do art. 643º do CPC.

Por ser tempestivo, admissível e possuir legitimidade. requer-se a Vossas Excelências, nos termos e para os devidos efeitos dos artigos 70º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 71º, n.º 1, al b) e 2, 72º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 75º e 75º-A, n.º 1 e 2, todos da Lei nº 28/82, a admissão do presente recurso, requerendo-se a remessa do respetivo processo para o Tribunal Constitucional, no sentido de aí vir a ser julgado e procedente.

Pelo que o n.º 3 do art. 33º da portaria deve ser considerado inconstitucional.

Termos em que, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de Vossas Excelências, se requer a admissão do presente recurso para o Tribunal Constitucional considerando as questões enunciadas e a verificação dos pressupostos legais, devendo considerar-se que o acórdão proferido viola os art. 112º, 161º, 198º, 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa, na interpretação dada ao disposto no art. 33º, n.º 3 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março aquando da reclamação para a conferência nos termos do art. 643º do CPC».

 

 

6.    Por meio da Decisão Sumária n.º 883/2018, a relatora originária decidiu não conhecer do recurso por ter considerado estarem em falta os requisitos de admissibilidade do mesmo, nomeadamente, a enunciação adequada de um critério normativo autonomizado, que não se limite a contender a decisão do caso concreto (fls. 100).

Irresignado, o recorrente apresentou reclamação para a conferência e requereu a revogação dessa Decisão Sumária, demonstrando como deu cumprimento a todos os requisitos exigíveis para que o recurso fosse conhecido (fls. 106-118). De facto, logrou assim fazer, tendo o Acórdão n.º 120/2019 deste Tribunal deferido a reclamação e admitido o recurso (fls. 121).

 

7.    Nesses termos, preenchidos os pressupostos processuais e admitido o requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

 

8.    Apenas o recorrente apresentou alegações (fls. 142-163) no sentido de reafirmar a inconstitucionalidade da norma do artigo 33º, n.º 3 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, que, ao contrário do mencionado na peça, se mantém inalterada desde a sua edição.

Das suas conclusões (fls. 157, verso – 162, verso), lê-se:

 

 

1 - Deve considera-se inconstitucional a norma do art. 33°, n.° 3 da Portaria n.° 419-A/2009, de 17 de Abril, na redacção que lhe foi dada pela Portaria n,° 82/2012, de 29 de Março da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra sobre a reclamação que decidiu que "cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC" porque a decisão proferida fez depender o recurso da verificação dos pressupostos ínsitos no art, 629° do CPC

2- O CPC remete para o RCP a disciplina das custas de parte, a qual se encontra prevista nos respectivos artigos 25° e 26° (artigo 533°, n.° 1, do CPC). Por sua vez, a Portaria n.° 419-A/2009, de 17 de Abril, na redacção que lhe foi dada pela Portaria n.° 82/2012, de 29 de Março (diploma que regulamenta o RCP) concretiza esta matéria no Capítulo V, com a epígrafe "Custas de parte".

3                    - A matéria relativa a custas de parte está regulada nos artigos 30° a 33° da Portaria. E não se entende que ao regular a matéria das custas de parte nestes artigos o legislador se esteja a afastar daquilo que referiu ser seu propósito com a publicação da Portaria - a regulamentação do modo de processamento das custas processuais, as quais integram as custas de parte.

4                    - No entanto, a reclamação judicial da nota descritiva e justificativa das custas de parte, só foi prevista na Portaria 419-A/2009 pois a matéria da reforma e da reclamação da conta de custas de parte não se encontra prevista no RCP mas apenas na Portaria n.° 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação dada pela Portaria n.° 82/2012, de 29 de Março, que "regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação, pagamento, processamento e destino das custas processuais, multas e outras penalidades" e cujo artigo 33° prevê a reclamação da nota justificativa, a apresentar no prazo de 10 dias, devendo posteriormente ser decidida pelo juiz em igual prazo. Caso o valor da nota seja superior a 50 UC, prevê-se o direito a recurso em um grau desta decisão. Além disso, nos termos do mesmo artigo, são ainda aplicáveis subsidiariamente as disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31° do RCP.

5                    - Do exposto decorre que o legislador nada disse em sede legislativa - ou seja, no RCP - acerca da possibilidade de reclamação da nota justificativa das custas de parte, tendo sujeitado regulamentarmente. através da Portaria n.° 419-A/2009, de 17 de Abril, na redacção dada pela Portaria n.° 82/2012, de 29 de Março, a impossibilidade de recorrer da decisão que incidir sobre essa reclamação, sendo justamente sobre a norma que resulta desta modificação que incide o presente recurso, nomeadamente quando se refere, no n.° 3 do art. 33° que "Da decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC."

6                    - Por conseguinte, cabendo a matéria em discussão na esfera de competência exclusiva da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.° 1, do artigo 165° da Constituição, em conjugação com o respectivo artigo 20°, n.° 1, dificilmente se entende que a matéria das custas de parte continue a ser regulada pela sobredita portaria.

7                    - De facto, possuindo a temática das custas de parte uma natureza restritiva do direito fundamental de acesso aos tribunais e tendo em conta o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência nacionais como sendo este um direito análogo a um direito, liberdade e garantia (nomeadamente, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2." ed., Wolters Kluwer, Coimbra Editora, 2010, p. 304 e Acórdão do Tribunal Constitucional n." 237/90, de 3 de julho de 1990, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) será de concluir pela aplicação do regime jurídico a estes aplicável, pelo que a matéria em apreço deve ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.", n.° 2, da CRP - "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."

8                    - Do Regulamento das Custas Processuais não consta qualquer norma habilitante que permita a regulamentação da matéria das custas de parte pelo que, estando em causa uma limitação a um direito fundamental como é o caso do acesso ao direito e aos tribunais, a norma em apreço padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, conforme o disposto no art. 165.", n." 1, alínea b) da CRP em conjugação com o art. 20.", n." 1 do mesmo diploma legal.

9                    - Tendo em conta que a matéria da reclamação das custas de parte é unicamente regulada por portaria e estando em causa uma restrição ao direito fundamental ao acesso ao direito e não existindo uma habilitação específica para o efeito no RCP nem em qualquer outra lei, a norma constante do n." 3 do artigo 33." da Portaria padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.° 1 do artigo 165." da CRP. em conjugação com o artigo 20.°. n.° 1. da CRP.

10                - Por conseguinte, a norma do n° 3 do artigo 33° da Portaria n° 419-A/2009, de 17 de Abril continua a tratar-se de uma norma consagrada num regulamento administrativo (uma portaria) e na mesma linha de orientação da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos do Tribunal Constitucional n° 280/2017 de 03/07/2017, n° 189/2016 de 03/05/2016 e n° 653/2016 de 29/11/2016), terá de ser declarada inconstitucional por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, constante do artigo 165.°, n.° 1, alínea b), em conjugação com o n.° 1 do artigo 20.°, ambos da Constituição da República Portuguesa.

11                - Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 653/2016 (ainda que a propósito da norma em causa na redacção dada pela Portaria 82/2012) "Tem vindo a ser reconhecido que «como é jurisprudência constante deste Tribunal Constitucional, uma norma emitida sem autorização parlamentar só padece do vício de inconstitucionalidade orgânica quando estipula qualquer efeito de direito inovatório que devesse recair na competência reservada da Assembleia da República, não sendo possível imputar-lhe esse vício quando se limita a reproduzir o regime preexistente (...) Esta jurisprudência incide, pois, sobre a relação entre a competência legislativa (reservada) da Assembleia da República e a competência legislativa do Governo.

Ora, a questão colocada no presente processo não se inscreve nesse âmbito, mas antes no domínio da distinção entre o exercício da função legislativa e da função administrativa.

12                - Efectivamente, no presente processo, estamos perante a regulação por portaria da reclamação da conta de custas de parte, de forma inovatória face ao acto legislativo (ao RCP) que é invocada como sua base habilitante. O objecto de análise é, assim, o da constitucionalidade do exercício da função administrativa, através de um acto regulamentar, para emitir a norma questionada, face à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e, consequentemente, à reserva de lei em sentido material (ou de função legislativa).

13                - De facto, se concluirmos que a matéria em questão está abrangida pela reserva decorrente do artigo 165.°, n.° 1, alínea b), da Constituição, logicamente ela estará subtraída à função administrativa, de onde decorreria a desconformidade constitucional da norma objecto do presente processo e que foi invocada para a não admissão do recurso.

14                - Assim, relativamente à referida norma, tendo em conta que a matéria da reclamação das custas de parte é unicamente regulada por portaria, que está em causa uma restrição do direito fundamental ao acesso ao direito e não existindo uma habilitação específica para esse efeito no Código de Processo Civil, no Regulamento das Custas Processuais ou em qualquer lei, a norma constante do n.° 3 do artigo 33.° da Portaria n.° 419-A/2009 padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.° 1 do artigo 165.° da CRP. em conjugação com o artigo 20.°. n.° 1. da Constituição da República Portuguesa.

15                - Tendo em conta que a matéria da reclamação das custas de parte é unicamente regulada por portaria e, mais concretamente, que se impôs o depósito da totalidade das custas de parte para se poder reclamar da nota justificativa apresentada, estando em causa uma restrição ao direito fundamental ao acesso ao direito e não existindo uma habilitação específica para o efeito no RCP nem em qualquer outra lei, a norma constante do n.° 2 do artigo 33.° da Portaria padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.° 1 do artigo 165.° da CRP, em conjugação com o artigo 20.°, n.° l, da CRP.

16                - A norma constante do n.° 3, do art.° 33.° da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril, na redacção dada pela Portaria n.° 82/2012, de 29 de Março é orgânica e formalmente inconstitucional, por violação da reserva de competência da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias - cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional datado de 30.03.2016, publicado no DR, 2.° Série, n.° 85.°, de 3 de Maio de 2016.

17                - Por outro lado, até à entrada em vigor do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n° 34/2008, de 26/02, que ocorreu em 20/04/2009, nos casos de condenação em multa, desde que não fosse por litigância de má-fé, a admissibilidade do recurso estava sujeita ao disposto no Art° 629° do Cód. Proc. Civil, nomeadamente ao respectivo n° 1 - Vide neste sentido, entre outras, a decisão sumária, de 05/07/2006, proferida no processo n° 127/06 e decisão do Ex.mo Presidente da Relação de Coimbra, de 21/05/2007, proferida no processo n° 75/07, disponíveis em www.desi.nt.

18                - Pelo que, quando a situação não se mostrasse enquadrável na previsão de tal dispositivo legal a condenação em multa cível - que o não fosse por litigância de má-fé - só seria susceptível de recurso se o valor da causa fosse superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada fosse desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, dependendo, assim, a recorribilidade da decisão não só do valor da causa - que teria de ser superior à alçada do tribunal recorrido - mas também do montante da multa aplicada, que corresponderia ao valor da sucumbência, e que teria de ser superior a metade da dita alçada.

19                - A entrada em vigor do RCP veio inovar em relação à recorribilidade das decisões que condenam em multa, com a previsão contemplada no n° 6 do art° 27° do mesmo, mormente a referente à expressão nela contida "fora dos casos legalmente admissíveis", não vem concitando entendimento uniforme.

20                - Para o Cons. Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, Almedina, 2009, pág. 329. "a expressão fora dos casos legalmente admissíveis é desadequada porque é susceptível de levar a crer, sobretudo no caso da taxa sancionatória excepcional, que se reporta a cominações fora das espécies processuais a que se reporta o proémio do artigo 447°-B do Código de Processo Civil ", concluindo, ao que parece, que do normativo em causa resultará que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência.

21                - A norma do n.° 6 do art.° 27° do RCP tem por objetivo introduzir uma regra geral de recorribilidade das decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória, fora dos casos de litigância de má-fé, de modo a colmatar o bloqueio decorrente do factor condicionante do valor.

22                - Assim, nos termos do n.° 6 do art.° 27.° do RCP, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, fora dos casos de litigância de má-fé, mas apenas em um grau, por paralelismo com o disposto no n.° 3 do art.° 542° do CPC.

23                - De fato, tal regime recursório encontra justificação na natureza e nos efeitos das decisões sancionatórias, reclamando o duplo grau de jurisdição que na verdade já se encontrava especialmente assegurado para as decisões de condenação em litigância de má-fé nos termos do art. 542°, n° 3, do CPC pelo que fazer depender o recurso do valor das custas é inconstitucional.

24                - Este regime não era isento de críticas, como aquelas que foram expressas por Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8® ed., pág. 120, nota 217 refere que o n° 6 do art. 27° do RCP visou moderar este regime, passando a prever- se a admissibilidade de recurso, em um grau, de qualquer decisão condenatória em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional fora dos casos legalmente admissíveis.

25                - Todavia, a redacção do preceito, tal a sua ambiguidade, suscitou fundadas dúvidas interpretativas, divergindo os Tribunais ora para considerar que a sua aplicabilidade se restringia aos casos em que a condenação não assentasse em qualquer disposição legal que a previsse (Acs. da Rei. de Coimbra, de 20-6-12, e da Rei. de Lisboa, de 29-4-14, em www.dgsi.pt), ora para concluir que da mesma decorria a admissibilidade de recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência (Acs. da Rei. de Coimbra, de 10-9-13, e da Rei. de Guimarães, de 26-9-13, em www.dgsi.pt), o autor aderiu à primeira tese, com argumentos que deixei expressos em Recursos no Novo CPC, 2^ ed., à margem do art. 629° do CPC. Porém, a prolação dos Acs. do STJ, de 26-3-15 e de 16- 6-15, em www.dgsi.pt despoletou a inversão daquela opinião, convencendo-me agora os argumentos que foram empregues em tais arestos no sentido de ser mais ajustada ao texto legal e ao elemento de ordem racional o entendimento de que é sempre admissível recurso, ainda que apenas em um grau, independentemente do valor da causa ou da sucumbência. das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, fora dos casos de litigância de má fé. pelo facto de estes já se encontrarem regulados no art. 542°. n° 3."

26                - Aqui chegados, entre uma interpretação minimalista ou até niilista da recorribilidade das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, salvo os casos de litigância de má fé e uma interpretação, de certo modo, maximalista do n° 6 do art. 27° do RCP, como a sustentada no acórdão-fundamento, afigura-se mais curial optar por esta, com a restrição acima indicada, por ser a que melhor condiz com a unidade do sistema jurídico e que melhor radica na occasio legis.

27                - Em suma, conclui-se que a interpretação mais conforme do n° 6 do art. 27° do RCP é a de que as decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, fora dos casos de litigância de má-fé, são recorríveis em um grau, independentemente do valor da causa ou da sucumbência".

28                - Conforme supra referido este mesmo raciocínio foi adoptado no citado Acórdão do STJ de 16-6-15, no qual se refere que: "Na linha de entendimento de Salvador da Costa, que não nos merece alguma reserva e a que aderimos, o que parece mais razoável é considerar que com a norma do n° 6 do art. 27° do RCP o legislador pretendeu introduzir uma regra geral de recorribilidade das decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória, torneando o bloqueio provocado pelo condicionalismo imposto pelo valor do processo ou da sucumbência. A expressão " fora dos casos legalmente admissíveis" assume uma função de limitação do normativo às decisões condenatórias nele previstas em situações diversas da litigância de má-fé. Na realidade, só com este entendimento é possível obter uma interpretação que tenha em conta a unidade do sistema jurídico, que confira utilidade e permita que se atenda conjugadamente ao disposto nos artigos 27° n°s 1,2,3 e 6, do RCP e aos arts. 629°, n° 1, e 644°, n° 2, al. e), do CFC, uma vez que o legislador manteve este último, com nova formulação relativamente à da al. c) do n° 1 do art. 691° do CFC revogado, para abranger quer a multa quer outra sanção processual. Carece, pois, de sentido, a nosso ver, a afirmação corrente no entendimento oposto de que a expressão "fora dos casos legalmente admissíveis" seria uma completa e pura inutilidade, sem qualquer significado. Aliás, as restrições de valor impostas no art. 629°, n° 1, do CFC à interposição de recurso não têm qualquer justificação, a par da que ora nos ocupa, em qualquer das alíneas do aludido art. 644°, n° 2, ou anterior 691°, n° 2 (decisões que apreciem o impedimento do juiz, a competência absoluta do tribunal, a suspensão da instância, a admissão ou rejeição de um articulado ou meio de prova, o cancelamento de um registo), nas quais não existe qualquer valor de sucumbência a atender. Em qualquer desses casos, trata-se apenas de impugnar uma decisão desfavorável que não tem qualquer ligação de valor com o pedido. Nestas circunstâncias ganha todo o sentido a interpretação de que o legislador pretende consagrar no art. 27°, n° 6, do RCP sempre a admissibilidade de recurso da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, não tendo sido é particularmente feliz na formulação perfilhada com a inserção da expressão "fora dos casos legalmente admissíveis", claramente desadequada. Como entende Salvador da Costa: "este normativo reporta-se, essencialmente, ao mérito da impugnação por via de recurso e não aos pressupostos relativos à sua admissibilidade".

29                - De forma idêntica, como se observou no acórdão do Supremo Tribunal de 26.03.2015 (proc. 2992/13.OTBFAF-A.El.SI, acessível em www.d2si.Dt/isti) que se pronunciou sobre questão em análise e cuja doutrina seguimos de perto, estaremos perante uma disposição especial relevante para efeitos de aplicação da excepção prevista na alínea a) do n° 2 do artigo 671° do Código de Processo Civil, parecendo valer aqui, por analogia (artigo 10° do Código Civil/, a razão subjacente ao disposto no alínea h) do n° 2 do artigo 629° isto é. assegurar o recurso das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, independentemente do valor da causa e da sucumbência. na medida em que no caso dos autos está em causa o recurso de decisão em que se discute a própria recorribilidade da mesma.

30                - No entendimento de que é sempre admissível recurso nas situações previstas no aludido n° 6 do artigo 27° pode citar-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2014 (proc. n° 183/12.7TBOER-A.L2-6, acessível em www, desi. pt/isti).

31                - Esta interpretação normativa, que encontra correspondência no texto legal, é a que melhor acolhe os critérios interpretativos enunciados no artigo 9° do Código Civil, nomeadamente, os elementos sistemático e teleológico, sendo também o que melhor se adequa à presunção de que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento.

32                - Tal entendimento determina que a decisão das custas de parte seja recorrível para o Tribunal da Relação, devendo, nessa medida, o recurso ser APRECIADO E PROVIDO em conformidade.

33-0 recorrente invoca também a inconstitucionalidade do art. 33°, n.° 2 por violação dos artigos 112°, 161°, 198° e 20° da CRP, argumentos que o Tribunal da Relação não acolheu.

34                - Na verdade, a imposição de condições de acesso dos cidadãos aos Tribunais para defesa de direitos, só pode ser estabelecida através dos actos legislativos previstos no artigo 112° n.° 1 da Constituição da Republica Portuguesa - leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais, não sendo admissível que tal matéria seja regulamentada através de portaria.

35                - Assim sendo, a imposição de restrições de acesso dos cidadãos aos Tribunais por portaria, condicionando o recurso ao valor da nota de custas de parte, além de violar a norma do artigo 112°, n.° 1, viola também as normas dos art. 161° (competência política e legislativa da Assembleia da Republica) e 198° (competência legislativa do Governo), bem como o art. 20° de acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, todos da CRP, e o princípio da separação de poderes.

36                - O direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva não se compadece, por ser discriminatória e desproporcionada, com uma restrição de acesso ao recurso judicial com base no valor da acção ou critério da sucumbência.

37- O acórdão do Tribunal da Relação, ao decidir nos termos decididos, violou princípios e direitos fundamentais consignados na Constituição da República Portuguesa, desde logo, o princípio da não discriminação no acesso ao direito e aos tribunais.

38                - Mais, o artigo em causa é materialmente inconstitucional por, ao arrepio do artigo 13.°, n.° 2, da Constituição, conduzir na prática a um tratamento desigual em razão da sua situação económica.

39                - Por outro lado, este preceito é inválido por se recusar o direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, concedido pelo artigo 20.°, n.° 1, da Constituição e violar o princípio constitucional da protecção jurisdicional efectiva, conduzindo, assim, a uma denegação da justiça por insuficiência de meios económicos.

40                - Todos os cidadãos são iguais perante a lei, a todos sendo assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais, para defesa dos seus interesses legítimos.

41                - A ordem jurídica é uma só, pelo que fica sem justificação plausível o facto de se reconhecer o duplo grau de jurisdição penal e recusá-lo na jurisdição cível. A previsão de uma ordem de tribunais ou hierarquia dos tribunais judiciais, impõe a existência de pelo menos um recurso dentro dessa hierarquia. Não podemos consentir, em qualquer caso, que possa haver um qualquer obstáculo de natureza económica, que inviabilize o direito de recorrer.

42                - Acresce que, o acórdão proferido viola, ainda, o princípio do Estado de Direito, plasmado no art. 2.° da C.R.P., a interpretação da lei ordinária que não permite um recurso jurisdicional de reacção contra «erros judiciários» ou contra violações jurisdicionais dos direitos fundamentais;

 

 

 Em virtude da cessação de funções da Relatora originária, foram os autos objeto de redistribuição.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

 

 

 

II. Fundamentação

 

a)       Delimitação do objeto do recurso

 

9.        Nos presentes autos, discute-se a constitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 33.° da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, no sentido de que cabe recurso da decisão proferida em um grau, se o valor da nota exceder 50 UC.

 

“Artigo 33.º

 

Reclamação da nota justificativa

 

(...)

 

3 - Da decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC. (Destacado).

 

(...).

 

A constitucionalidade da norma extraída de tal preceito é questionada orgânica e formalmente, à luz do parâmetro do artigo 165.º, n.º 1, al. b), em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1 da Constituição, que preveem:

 

“Artigo 165.º

Reserva relativa de competência legislativa

1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

[…]

b) Direitos, liberdades e garantias.

 

 

Artigo 20.º

Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”

 

 

Por outro lado, é ainda questionada a sua constitucionalidade material por ofensa ao princípio da não discriminação, da garantia de acesso ao direito e aos tribunais e do direito ao duplo grau de jurisdição.

 

b)       Jurisprudência do Tribunal Constitucional acerca da Portaria n.º 419-A/2009

 

10.     Esta não é a primeira vez que o Tribunal Constitucional é confrontado com a questão da constitucionalidade das normas extraídas do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009. Como se sabe, nessa matéria, foram recentemente proferidas diversas decisões por este Tribunal, nomeadamente, o Acórdão n.º 678/2014, o Acórdão n.º 189/2016, o Acórdão n.º 653/2016 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt),  além das Decisões Sumárias n.º 806/2016, n.º 16/2017 e n.º 17/2017.

Exclusivamente no primeiro caso, a 2.ª Secção do Tribunal Constitucional decidiu não julgar materialmente inconstitucional, especificamente, a norma constante do n.º 2 do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, que, de qualquer forma, não integra o objeto do presente recurso.

Por outro lado, em todos os demais casos, o Tribunal julgou inconstitucional a mesma norma do diploma em crise por violação da reserva de competência da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1, ambos da CRP, decisão que, potencialmente, pode afetar a solução do recurso dos presentes autos.

Com efeito, o entendimento consolidado do Tribunal vai no sentido de que a adoção da Portaria n.º 419-A/2009 colide orgânica e formalmente com tal preceito constitucional, tendo sido declarada, na sequência da jurisprudência supra, a sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, naquela dimensão normativa específica, por meio do Acórdão n.º 280/2017, do Plenário.

Nessa decisão, o Tribunal, remetendo para o anterior Acórdão n.º 189/2016 (pontos 6 e 7), recorda que “a específica imposição de condições à possibilidade de reclamação de questões atinentes a custas judiciais, como é o caso das custas de parte, afeta, sem dúvida, o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, tendo sido configurada como uma restrição por este Tribunal nos acima referidos Acórdãos n.º 347/2009 e n.º 678/2014”.

Como esta matéria atinente à reclamação da nota justificativa das custas de parte tem uma natureza restritiva de um direito fundamental, o Tribunal tem tratado este direito como análogo a um direito, liberdade e garantia e, por isso, o seu regime jurídico, material e orgânico, deve ser aplicado. Consequentemente, nos termos da jurisprudência destacada, a regulamentação que envolve tais conteúdos deve ser levada a efeito “por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP”.

Assim, a conclusão do Tribunal determina que não se pode admitir que seja uma norma originada pelo exercício das atribuições executivo-administrativas do Estado a regular a disciplina em questão, a qual exige a manifestação legislativa do competente poder da República.

Com isto, resta averiguar, no presente, se se verifica o mesmo.

 

c)        Do mérito do recurso

 

11.       O regime das custas processuais, tal como previsto no artigo 529.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), abrange a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. Para o que conceptualmente releva nos presentes autos, o número 4 do mesmo dispositivo estabelece que as custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.

Mais especificamente, o artigo 533.º do CPC, aditado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, determina, no número 1, que as custas da parte vencedora são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais. Igualmente, no número 2, apresenta-se a enumeração das despesas integrantes das custas de parte: as taxas de justiça pagas, os encargos efetivamente suportados pela parte, as remunerações pagas ao agente de execução e as despesas por este efetuadas, e os honorários do mandatário e as despesas por este efetuadas.

Trata-se, assim, como havia destacado o Acórdão n.º 189/2016, de um “reembolso de certas despesas em que a parte vencedora incorreu e relativamente às quais tem o direito de ser compensada” (ponto 5), cabendo à parte interessada em resgatar o respetivo valor a elaboração da nota discriminativa e justificativa de tais custas.

 

12. Antes da entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de março, o iter dessa elaboração e a sua forma de processamento e tramitação eram regidos pelo Regulamento das Custas Processuais (RCP) – e daí decorre a remissão que faz o CPC – nos termos dos artigos 25.º e 26.º, que fixavam, e ainda fixam, os moldes de intervenção da parte vencedora para que receba as custas a que tenha direito, em que se incluem o prazo (cf. artigo 25.º, n.º 1), os elementos de identificação processual [art. 25.º, n.º 2, a)], a discriminação das quantias pagas a título de taxa de justiça e encargos ou despesas suportadas pelo agente de execução [art. 25.º, n.º 2, b) e c)], honorários [art. 25.º, n.º 2, d)] e valor a receber [art. 25.º, n.º 2, e)]. Não obstante, por força do artigo 26.º, do RCP, define-se que, em regra, as custas de parte são pagas diretamente pela parte vencida à parte que delas seja credora (n.º 2) e os valores elegíveis para pagamento (n.º 3).

Com efeito, no silêncio do RCP quanto às formas e aos meios de reclamação da conta de custas de parte, a única fonte normativa que disciplinava a impugnação do teor da nota justificativa repousava no artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril. Destaque-se que não se encontrava nem no RCP nem no CPC qualquer autorização legislativa para a regulamentação ser efetuada em sede de diploma de natureza administrativa, adotado pelo Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e da Justiça.

Como se trata de um instrumento com esse cariz, advindo do poder executivo, importa verificar, à luz da fiscalização de constitucionalidade, com fundamentos orgânicos ou formais, se a norma atacada poderia de facto ter sido legitimamente produzida no exercício da atividade administrativa do Estado.

A isto já respondeu, reiteradamente, conforme explicitado supra, a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Remetendo para o Acórdão n.º 280/2017, do Plenário, que transcreveu a fundamentação do Acórdão n.º 189/2016 – depois reafirmado pelo Acórdão n.º 653/2016 –, chegamos à conclusão de que, por estar incluída na reserva constitucional de ato legislativo, “a matéria em causa deve ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP” (cf. Acórdão n.º 280/2017, ponto 8, e Acórdão n.º 189/2016, ponto 7).

 

Ocorre que a já aludida Lei n.º 27/2019, de 28 de março, promoveu uma significativa alteração – ainda não trazida à apreciação perante este Tribunal – no regime das custas de parte, especificamente no âmbito da reclamação da nota justificativa. Isso porque tal diploma, adotado pela Assembleia da República (AR) e, portanto, respeitador da reserva de lei e da competência do poder legislativo, veio engendrar a reprodução normativa, em sede própria, do conteúdo das regras antes previstas pela Portaria n.º 419-A/2009. Na verdade, a nova lei n.º 27/2019, da Assembleia da República, no seu artigo 6.º, copiou integralmente – ipsis litteris – o teor constante do artigo 33.º da Portaria em apreço e transpôs o mesmo para o RCP, a que acrescentou o artigo 26.º-A.

Assim, temos que as normas que padeciam de inconstitucionalidade orgânica porque emanavam de instrumento regulatório impróprio para o efeito – afinal uma portaria de natureza administrativa não pode afetar matérias reservadas à lei e à competência do poder legislativo –, foram objeto de uma “legalização” superveniente, decorrente do exercício de funções legiferantes por parte da Assembleia da República.

 

13. Tendo em mente o novo enquadramento sistémico, é necessário averiguar se, para o caso dos presentes autos, a nova legislação produzida é suscetível de atender à exigência constitucional de regulação por lei da AR e de suprir a inconstitucionalidade orgânico-formal identificada na Portaria n.º 419-A/2009.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem estabelecido dois critérios nesta análise. Segundo os Acórdãos n.º 50/2019 (ponto 10), 159/2018 (ponto 10, in fine) e 195/2016 (ponto 8), a conclusão pela inconstitucionalidade orgânica de determinado diploma depende de se verificar o seguinte:

i)                     a sanação do vício de inconstitucionalidade por força de lei posterior da Assembleia da República tenha sido feita à data de aplicação da norma;

ii)                   nos casos de republicação normativa, ocorra a revogação global do diploma em crise.

 

Nesse sentido, em síntese, para o que releva nestes autos, resta aferir se os efeitos da lei nova (Lei n.º 27/2019) se reportam ao momento em que in casu a Portaria 419-A/2009 foi aplicada. A simples consulta do artigo 11.º da Lei n.º 27/2019 indica claramente que não.

Lê-se:

 

“Artigo 11.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no prazo de 30 dias após a sua publicação, aplicando-se apenas às execuções que se iniciem a partir dessa data”.

 

Considerando que esta nova lei foi publicada no Diário da República n.º 62/2019, Série I, de 28 de março de 2019, o termo previsto para o início da sua vigência foi 27 de abril de 2019, e apenas para as execuções a começar nesta data. Não é evidentemente o caso destes autos, cuja execução ordinária, Processo 1040/03.3TBPBL, tem como data de referência 26 de junho de 2017, data largamente anterior ao que definiu a nova lei.

Com efeito, não há dúvida de que a eventual sanação do vício de inconstitucionalidade orgânica da Portaria 419-A/2009 através da lei superveniente da Assembleia da República não atinge, em qualquer hipótese, o objeto deste recurso. Por esse motivo, seguindo o princípio tempus regit actum, e em consonância com os juízos formulados pelo Tribunal Constitucional, maxime nos Acórdãos nº 189/2016, 653/2016 e 280/2017, é de concluir que a matéria em causa devia ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

Assim sendo, como no presente processo incide a norma do artigo 33.º, n.º 3 da Portaria n.º 419-A/2009, é inevitável reconhecer a inconstitucionalidade orgânica nos termos inscritos supra.

Em conclusão, a norma constante do n.º 3 do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, com o sentido de que “[d]a decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC” é inconstitucional por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

 

 

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a)       Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, com o sentido de que “[d]a decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC”, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1, da CRP;

 

b)      Julgar procedente o recurso e determinar a reforma da decisão recorrida.

 

Sem custas.

 

Lisboa, 13 de novembro de 2019 - Mariana Canotilho - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Manuel da Costa Andrade

 




 


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