TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
Acórdão
CÍVEL
Processo

293/21.0T8MAI.P1

Data do documento

7 de novembro de 2024

Relator

Paulo Dias Da Silva


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TAMANHO DE LETRA              



RELEVÂNCIA


Descritores

Compra e venda de veículo automóvel
Crédito ao consumo
Defeitos do veículo
Ónus da prova


Sumário

I - Segundo o artigo 913º, n.º 1, do Código Civil, “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.
II - Importa, ainda, ter presente que ao litígio subjacente aos autos são, ainda, aplicáveis as disposições constantes do Decreto Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, que nos remete para a aplicabilidade do regime legal de protecção ao consumidor.
III - No caso concreto, o autor veio sustentar que o veículo por si adquirido padece de anomalias que implicam um consumo excessivo de GPL, incumbindo-lhe o respectivo ónus de prova, nos termos do artigo 342º do Código Civil.
IV - O autor, todavia, não logrou provar que o veículo por si adquirido apresente qualquer anomalia de funcionamento ou desconformidade quanto às qualidades e ao desempenho que podia razoavelmente esperar, o que implica a improcedência da sua pretensão.

Recurso de Apelação - 3ª Secção

ECLI:PT:TRP:2024:293/21.0T8MAI.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

AA, residente na Rua ..., ..., no ..., Maia, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A., com sede na Rua ..., Lote n.º ......, em Lisboa, e B... - Sucursal Portugal, S.A., com sede na Rua ..., Lote n.º ......, em Lisboa, onde concluiu pedindo que:

- seja reconhecido que o contrato de compra e venda e o contrato de crédito ao consumo para compra do veículo automóvel Renault ... com a matrícula ..-ZD-.., do ano de 2019, foram resolvidos com justa causa;

ou, caso assim não se entenda

- que o negócio seja anulado por erro sobre o objecto do negócio por parte do autor, ao abrigo dos artigos 247º e 251º do Código Civil;

e, em consequência, independentemente de qual dos dois pedidos tiver procedência,

- condenar a ré A..., S.A. a pagar à ré B..., Sucursal Portugal, S.A. a quantia de € 6.759,16, correspondente ao valor que esta mutuou para que o autor comprasse o veículo automóvel;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 6.600,00, correspondente ao valor pago por este a título de entrada inicial;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 164,27, pelo custo suportado por este na substituição do óleo e do filtro da viatura;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 778,60, pelo dano de privação do uso da viatura automóvel;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 15,63, por dia, desde o dia 18/6/2020 até ao dia que vier a ser retirada a viatura da sua garagem;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 4.000,00, a título de danos não patrimoniais;

- condenar a ré A..., S.A. a pagar-lhe a quantia de € 240,76, pagos por este a título de liquidação de imposto de circulação automóvel.

- condenar a ré B..., Sucursal Portugal, S.A. a devolver-lhe a quantia de € 2.975,00, correspondente ao valor que recebeu de remuneração do capital que emprestou durante a vigência do contrato entre os meses de Setembro de 2019 e Janeiro de 2021, bem como a devolver as quantias que ainda vierem a ser debitadas da conta do autor até ao trânsito em julgado deste processo;

- condenar a ré B..., Sucursal Portugal, S.A. a pagar-lhe a quantia de € 599,42, pelos custos administrativos suportados inicialmente por este pela celebração do contrato de financiamento;

- condenar a ré B..., Sucursal Portugal, S.A. a devolver-lhe a livrança que por força do contrato de mútuo lhe foi entregue sem a preencher;

- condenar ambas as rés a pagar-lhe os juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento das quantias atrás discriminadas contados desde a data de citação.

Alega, em síntese, que adquiriu à ré “A..., S.A.” o veículo de marca Renault ..., com a matrícula ..-ZD-.., do ano de 2019, pelo preço de € 13.359,16.

Para pagamento do preço supra aludido, entregou à ré “A..., S.A.” a quantia de € 6.600,00 e contraiu um empréstimo junto da ré “B... - Sucursal em Portugal, S.A.”, para financiamento da aquisição do veículo em apreço, no montante de € 6.759,16.

Acrescenta que optou pela aquisição do veículo atrás aludido em função do seu baixo consumo, o que era do conhecimento dos funcionários da primeira ré.

Alega, ainda, que a primeira ré divulgava que o consumo médio de GPL do veículo em apreço era de 7 litros por cada 100 quilómetros percorridos.

Logo após a aquisição, o veículo atrás mencionado apresentou um consumo excessivo de GPL, superior a 10 litros por cada 100 quilómetros percorridos.

Acrescenta que, apesar das reclamações apresentadas, a primeira ré nunca solucionou, nem reconheceu o problema da existência de consumo excessivo de GPL.

Mais alega, que o veículo atrás mencionado padece de defeito, não tendo as qualidades asseguradas, tendo actuado em erro sobre o objecto do negócio.

Acrescenta que comunicou às rés a sua decisão de resolver os contratos de compra e venda e de financiamento, devendo ser indemnizado pelos danos patrimoniais e morais que suportou na sua esfera jurídica.

*

Citada, a ré A..., S.A. apresentou contestação, tendo, ainda, deduzido pedido reconvencional contra o autor e formulado pedido de intervenção principal provocada da sociedade A..., S.A.

Alega, em síntese, que o produtor do veículo em apreço nos autos foi a sociedade A..., S.A., a qual deve ser admitida a intervir nos autos.

Acrescenta que a chamada é a única responsável por eventuais desconformidades do veículo.

Mais alega, que efectuou todos os testes e reparações necessários a atender às reclamações do autor.

Acrescenta que o veículo adquirido pelo autor não padece de qualquer defeito, estando em perfeitas condições de funcionamento e que os consumos dos veículos são variáveis.

Mais alega, que caso o tribunal entenda haver lugar à resolução do contrato, a devolução integral do preço configura um manifesto abuso de direito.

Refere, ainda, que a utilização do veículo efectuada pelo autor implicou a desvalorização do mesmo na quantia de € 5.338,00.

Conclui pedindo que a acção seja julgada improcedente, com a consequente absolvição do pedido, ou, caso assim não se entenda, no caso de haver lugar à resolução do contrato e devolução do veículo, que o pedido reconvencional seja julgado procedente e o autor seja condenado a reembolsar-lhe o valor de € 5.338,00, correspondente à desvalorização do veículo pela sua utilização durante um ano, sempre e em qualquer o caso, sem prejuízo do efectivo valor comercial que o veículo venha a ter na data da sua devolução.

*

Citada, também a ré B... - Sucursal Portugal veio deduzir contestação.

Alega, em síntese, que desconhece os danos e prejuízos invocados pelo autor e que o veículo em apreço nos autos não padece de qualquer defeito, cumprindo com todas as normas e padrões exigíveis.

*

Notificado, o autor apresentou réplica e resposta à contestação, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional contra si deduzido e concluindo como na petição inicial.

*

Mediante despacho proferido nos autos foi admitida a intervenção acessória provocada da chamada A..., S.A.

*

Citada, a interveniente A..., S.A. apresentou contestação.

Alega, em síntese, que desconhece a factualidade em que o autor fundamenta a sua pretensão.

Mais alega, que os consumos anunciados são valores médios, podendo sofrer variações.

Conclui considerando que a acção deve ser julgada improcedente.

*

Mediante despacho proferido nos autos, foi admitido o pedido reconvencional deduzido pela ré A..., S.A.

*

Foi proferido despacho saneador no qual se afirmou a validade e regularidade da instância.

*

Procedeu-se à fixação dos factos assentes e à enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada reclamação.

*

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.

*

Após a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

*

Não se conformando com a decisão proferida, veio o autor AA interpor recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:

I. Nos presentes autos, o objeto do litígio consiste em primeiro lugar no pedido de resolução ou de anulação dos contratos em apreço nos autos por defeito de fabrico da viatura, bem como no pagamento das quantias peticionadas pelo Recorrente.

II. Atento o pedido reconvencional deduzido pela 1.ª Ré, o objeto do litígio consistia ainda no pedido de reembolso por parte do Recorrente da quantia correspondente à desvalorização do veículo. Isto apenas e só caso procedam os pedidos do Recorrente.

Desvalorização dada como não provada uma vez que as Rés nem o provaram nem o tentaram fazer, uma vez que não foi junto nenhum documento a atestar a veracidade disso nem nenhuma testemunha se pronunciou sobre isso.

III. Feito este enquadramento, cumpre agora referir, que, como seria de esperar, o Recorrente julgou, e bem, que havia adquirido uma viatura em bom estado de conservação, sem defeitos, e com as características que o determinaram na sua escolha.

IV. De acordo com aquilo que foi possível apurar, a principal característica que determinou a escolha do Recorrente por este veículo em concreto, foi precisamente os seus baixos consumos.

Mais tarde,

V. Durante a sua procura e em conversa com o seu amigo de longa data (o Sr. BB) que prestou o seu depoimento, disse que tinha uma viatura igual em termos de marca e cilindrada à viatura aqui em causa. Muito embora a sua viatura fosse do ano de 2016.

Com efeito,

VI. O amigo do Recorrente tecia rasgados elogios aos consumos de GPL desta viatura, os quais segundo o mesmo andavam entre os 6 e os 7 litros por cada 100 km percorridos.

VII. Tendo inclusivamente permitido ao Recorrente experimentar a condução do mesmo.

VIII. Na sequência disso, o Recorrente decidiu saber mais informações junto da concessionária em Gondomar, aqui 1.ª Ré.

IX. Tendo isso desenvolvido para a compra da viatura aqui em causa.

X. Sobre a questão dos consumos propriamente ditos refira-se o seguinte.

XI. Em primeiro lugar, é incontornável chamar à colação o resultado do teste de condução.

Segundo o manuscrito que foi junto aos autos pelo condutor indicado pela 1.ª Ré foram percorridos 93 Km e 700 metros, tendo sido registado um consumo de 8,78 litros.

XII. No entanto, não posso deixar de realçar que as referências usadas ao longo de todo este processo para se saber se há ou não consumos excessivos tem sempre por base o valor dos consumos por cada 100 km percorridos, e não por cada 93 Km e 700 metros percorridos.

XIII. No artigo 14.º da sua petição inicial o Recorrente faz alusão a consumos médios de GPL de 10 litros por cada 100 Km percorridos. E não por cada 93 Km e 700 metros percorridos.

E mais tarde, o Recorrente, em resposta ao douto despacho saneador refere no artigo 26.º dessa mesma resposta que essa média de consumos andaria entre os 9,5 litros e os 10,5 litros, também por cada 100 Km percorridos. O que também vem dito pelo Recorrente em reclamação enviada por email à 1.ª Ré (Documento n.º 6 da petição inicial)

XIV. Deu um intervalo de consumos, uma vez que os mesmos naturalmente variam consoante o carro estivesse mais ou menos carregado, ou conforme o mesmo andasse mais ou menos tempo em circuitos urbanos e extra-urbanos.

Assim,

XV. O acordado pelas partes e o ordenado pelo Tribunal foi o percurso de 100 Km e não 93 Km e 700 metros!

No entanto,

XVI. Sempre se diga, que tal também não seria necessário, uma vez que, com o percurso de 93 Km e 700 metros dá para saber o valor exato de consumo e à vírgula por cada 100 Km percorridos.

XVII. Basta para o efeito fazer uso da conhecida regra de três simples que todos aprendemos no ensino básico e que nos diz para este caso em concreto que para sabermos o valor exato de consumo por cada 100 Km percorridos teremos que multiplicar o valor de consumo obtido no percurso dos 93 Km e 700 metros por 100 e depois dividir esse resultado por 93,7 Km.

XVIII. E o resultado que se teria obtido por cada um dos 100 Km percorridos seria de 9,37 litros por cada 100 Km percorridos. Ver supra a matéria alegada na Impugnação da Matéria de Facto nos artigos 51.º a 86.º das presentes alegações.

XIX. Trata-se de aritmética simples e elementar. Negar isto é negar uma certeza matemática absoluta. A não ser que se ache que os restantes 6 Km e 300 metros que faltavam percorrer para perfazer o total de 100 Km fossem feitos apenas com ar no depósito de GPL.

Quanto ao resto,

XX. Todas as Rés neste processo contestam a alegação do Recorrente na parte em que o mesmo afirma que o valor dos consumos desta viatura está amplamente divulgado em todos os sites institucionais da marca.

XXI. Contestando ainda que no documento junto pelo Recorrente a título meramente exemplificativo como Documento n.º 5 da petição inicial não consta a menção expressa a esses consumos. Até porque a digitalização do mesmo não estará nítida.

No entanto,

XXII. O certo é que nesse Documento n.º 5 consta o valor de 5,6 litros a 5,8 litros por cada 100 km e 6,9 litros a GPL. Mas também não é por isso que não fica provado que o Recorrente não tenha determinado a sua escolha por este veículo com base nas várias pesquisas que fez em sítios da internet, como o mesmo acabou por afirmar neste julgamento. Este Documento n.º 5 é um de muitos sites oficiais de concessionárias onde constam os valores de consumos de cada carro. Se houver dúvidas nesse sentido desafia-se qualquer um a realizar uma simples pesquisa por este ou por qualquer site num motor de busca e ver-se-á que os consumos estimados vêm sempre declarados. É uma prática comum colocar esta informação na internet.

No entanto,

XXIII. Há neste processo além deste Documento n.º 5 uma prova inequívoca de que os consumos se encontram publicamente divulgados na internet.

XXIV. E essa prova é que o Recorrente já no artigo 10.º da sua petição inicial, a qual foi submetida no dia 19 de Janeiro de 2021 alegou que vinha descrito nos canais institucionais da marca e outros de que este veículo realizaria consumos médios entre 5,6 e os 5,8 litros de diesel e os 7,0 litros de GPL por cada 100 Km percorridos.

Ora,

XXV. Volvidos 1 ano e 9 meses depois de ter sido submetida a petição inicial, vem, a 1.ª Ré (A...) no dia 12.09.2022, em resposta ao Douto Despacho Saneador juntar como Documento n.º 2 um documento a que a própria 2.ª Ré de sua iniciativa chamou de “certificado de conformidade e ficha de homologação do veículo”. Do veículo aqui em causa e não de outro qualquer. Sendo que, este documento, ou a declaração que lá consta quanto aos consumos, conforme emails do Recorrente juntos com a petição inicial foi um documento que o Recorrente sempre pediu que lhe fosse enviado em sede de reclamação de consumos e a 1.ª Ré sempre se recusou inexplicavelmente a fazê-lo. Este documento é a questão mais central em todo este processo para determinar o desfecho mais justo a dar ao mesmo.

Isto porque,

XXVI. Consultada a 8.ª linha do ponto n.º 49 da página n.º 3 desse documento, verifica-se que os consumos diesel combinados em condições urbanas e extra-urbanas são de 5,6 litros por cada 100 Km percorridos. O Recorrente no artigo 10.º da sua petição inicial alegou entre 5,6 litros e 5,8 litros.

Por outro lado,

XXVII. Quanto aos consumos mistos de GPL em condições urbanas e extra-urbanas vem referido um pouco mais abaixo na 15.ª linha desse mesmo ponto 49 da página 3 que os mesmos são de 6,9 litros por cada 100 Km percorridos. O Recorrente no artigo 10.º da sua petição inicial alegou 7,0 litros.

XXVIII. Questiona-se então: Como é que o Recorrente, 1 ano e nove meses antes de ter acesso pela primeira vez a este documento junto pela 1.ª Ré ao processo teve a extraordinária capacidade de dizer de forma tão certeira e à virgula os consumos que o mesmo julgava que ia ter na viatura que adquiriu?

XXIX. Como é óbvio, o Recorrente fez esta alegação no seu artigo 10.º da sua petição inicial não só porque foi a informação pública que conseguiu recolher junto dos ditos sites institucionais;

XXX. Mas também porque foi isso que lhe foi dito no próprio stand pela própria técnica comercial CC que prestou o seu depoimento.

Aliás,

XXXI. Sobre o depoimento da Sra. CC cumpre dizer que as respostas da mesma às perguntas que lhe iam sendo colocadas pelo Juiz, pelo mandatário do Recorrente, e pelos restantes mandatários iam sempre alterando o seu sentido consoante a quem a mesma respondia.

No entanto,

XXXII. E independentemente disso houve duas frases que a mesma disse que se fazem questão de anotar. Segundo esta testemunha foi dito no seu depoimento e passa-se a citar que:

“Está bem presente na proposta entregue ao cliente o valor dos consumos.” E a segunda frase no que respeita a consumos disse que: “Falamos sempre dos valores preconizados pela marca.”. Ver para o efeito os artigos da impugnação da matéria de facto e respetivas transcrições do depoimento (artigos 165.º a 204.º)

XXXIII. Está gravado e não pode haver lugar a segundas interpretações quanto ao sentido destas duas frases proferidas por essa testemunha independentemente das tentativas que a mesma fez para negar que se fale de consumos com os potenciais interessados.

XXXIV. Ainda quanto ao depoimento desta testemunha, refira-se que a mesma tentou negar que um dos principais argumentos de venda de um carro com estas características é precisamente os seus consumos. Tendo também negado que essa é uma das principais preocupações que os clientes lhe manifestam na hora decidir o carro que vão comprar.

Aliás, quando questionada se nem arrisca em falar em intervalos de consumo aos seus clientes a mesma dizia contraditoriamente com o que antes tinha dito que não.

XXXV. Sobre este aspeto acho que basta a experiência que todos temos da natureza das conversas tidas com um técnico de venda num stand. É óbvio que a questão dos consumos é sempre uma questão falada pelos técnicos de vendas. Não há como fugir isso!

XXXVI. Ainda que esse técnico só diga que o carro tem bons consumos sem adiantar valores. Bons consumos não são de certeza 9,37 litros por cada 100 Km percorridos quando toda a gente sabe que no mercado há carros que têm consumos entre os 5 e os 7 litros por cada 100 Km.

XXXVII. Relativamente a essa testemunha destaca-se que a mesma foi desafida a tentar convencer alguém a comprar um Renault Dacia. Solicitou-se que a mesma persuadisse pela via de uma característica diferenciadora desta viatura. Depois foi questionada sobre se a mesma achava que alguém que compre um carro desportivo de alta cilindrada se é próprio de alguém que está preocupado com os altos consumos.

XXXVIII. A mesma chegou ao ridículo de responder que não tinha como ter noção disso num cliente desses. Tudo numa tentativa vã de levar até ao fim o argumento de que não tem obrigação de saber que um cliente que queira comprar um Renault Dacia não seja um cliente preocupado com os consumos baixos dessa viatura.

XXXIX. Isto caso, o cliente não lhe tivesse dito que era isso que pretendia no carro que viesse a comprar, o que nem foi aqui o caso. Uma vez que de acordo com o depoimento do Recorrente, da sua esposa e do seu amigo esse foi sempre o critério em torno do qual o Recorrente iria determinar a escolha da sua viatura, motivo pelo qual, se o Recorrente soubesse de antemão que este carro iria ter estes consumos tão altos o mesmo nunca teria comprado esta viatura.

XL. Isto muito embora a testemunha CC negue que o Recorrente lhe tenha manifestado essa preocupação antes de escolher a viatura.

XLI. Por fim, sobre este depoimento da testemunha CC, refira-se ainda que consultando as transcrições do seu depoimento verifica-se que a mesma quando questionada se era possível que esta viatura conduzida nas exatas e mesmas condições (circuito e velocidade) que um Ferrari se era possível a viatura do Recorrente ter consumos mais altos. A mesma respondeu afirmativamente, o que atenta conta o mais elementar bom senso, uma vez que fazendo uma simples pesquisa num motor de busca verifica-se que o um Ferrari de qualquer modelo andará sempre na ordem dos 20 a 30 litros/100 km percorridos.

XLII. Mais grave ainda, das transcrições resulta que esta testemunha teve acesso prévio pela 1.ª Ré ao resultado do teste realizado à viatura no âmbito deste processo, uma vez que a mesma referia que a viatura fazia consumos de 7,9 a 8,4 para logo a seguir quando confrontada com as condições do teste realizado à viatura neste processo dizer que o consumo nesse caso se situaria entre 8,6 e os 8,9 por forma a dar um intervalo que cobria os 8,78 no resultado desse teste.

XLIII. Ainda sobre os consumos: V/Exas. poderão querer eventualmente usar de um critério o mais rigoroso e minucioso possível na aferição dos consumos reais desta viatura e sobre se os mesmos são ou não desajustados de acordo com aquilo que era esperado pelo Recorrente.

XLIV. Poderão V/Exas. eventualmente entender que o Recorrente referia na sua petição inicial que os consumos médios andavam pelos 9,5 a 10,5 litros de GPL por cada 100 Km percorridos. Quando afinal o consumo a que se chegou foi de 9,37 litros.

XLV. No entanto, salvo o devido respeito, dever-se-á usar desse mesmo critério rigoroso para se entender que o critério de consumo teve sempre por base os 100 Km percorridos e não o valor constante dos 93,70 Km percorridos.

XLVI. Salvo melhor opinião também não deverá ser usado como único critério o valor alegado pelo Recorrente na sua petição inicial para aferir se existe ou não um defeito na parte respeitante aos consumos.

XLVII. Para essa ponderação deverá atribuir-se também preponderância provatória em relação aos consumos preconizados pela marca e que constam do certificado de conformidade e da ficha de homologação do veículo que foi junto aos autos pela 1.ª Ré em resposta ao douto Despacho Saneador.

XLVIII. Mais do que os valores alegados pelo Recorrente o que aqui estava verdadeiramente em causa era descobrir se esta viatura tinha ou não tinha um defeito e se os consumos de GPL estão ou não em conformidade com aquilo que era esperado dela.

Ora,

XLIX. O Recorrente na petição inicial alegou que tinha um consumo mínimo de 9,5 litros de GPL por cada 100 Km percorridos. No entanto o teste deu 9,37 litros por cada 100 Km.

Ou seja, entre o alegado pelo Recorrente e o resultado do teste temos uma diferença de 0,13 litros a menos por cada 100 Km percorridos.

No entanto e ao mesmo tempo,

L. Cruzando o resultado do teste de condução com o valor constante da ficha de homologação desta viatura verifica-se que há uma diferença de 2,47 litros a mais do que era expectável.

LI. Questiona-se: Quem está mais longe da verdade? É a diferença de 0,13 litros alegado pelo Recorrente ou a diferença de 2,47 litros constante do documento oficial da marca?

LII. Mas continuando na senda do rigor dessa avaliação de V/Exas. sempre se dirá que o Recorrente não mentiu quando alegou que os consumos da sua viatura na sua mão andavam pelos 10 litros por cada 100 Km percorridos.

LIII. É óbvio que em determinadas circunstâncias existem variantes que podem pôr em causa os consumos da viatura. Designadamente uma carga transportada na mala, mais pessoas sentadas dentro do carro ou percursos com mais subidas e dentro da cidade. É tendo tudo isso em consideração que o Recorrente alegou os 9,5 a 10 litros.

No entanto,

LIV. O certo é que a viatura no teste realizado, sem carga nenhuma na mala, sem acessórios montados, sem dispositivos ligados e somente com duas pessoas a bordo consumiu mesmo assim 9,37 litros. Valor este que seria normal quanto muito com uma mala carregada e 4 pessoas a bordo. Ou então se tivesse feito unicamente circuito urbano durante todos os 100 km.

LV. Mas que já não é normal nas condições em que o teste foi realizado.

LVI. Quanto aos períodos de tempo em que o Recorrente este privado do uso da sua viatura refira-se o seguinte:

LVII. A viatura esteve nas instalações da 1.ª Ré para reparação durante 6 meses entre os dias 29.12.2019 e 18.06.2020. A melhor prova da permanência da viatura durante todos esses meses nas instalações da 1.ª Ré é o depoimento do Recorrente e do Engenheiro DD, ao que se acrescenta ainda o email enviado pelo Engenheiro DD ao Recorrente no dia 02.06.2020 onde se ameaçava cobrar 15,63 € por cada dia de parqueamento da viatura, documento esse junto como Documento n.º 19 da petição inicial.

LVIII. Quanto aos dias em que a viatura este imobilizada na garagem do Recorrente depois do dia 18.06.2020 até à presente data pelo facto de a 1.ª Ré se recusar a reparar a viatura ou a substituí-la por outra igual temos o depoimento não só do Recorrente como também da esposa do mesmo que com ele reside.

LVIX. Quanto ao apuramento das consequências patrimoniais que advieram para o Recorrente em resultado da privação do uso do veículo.

LX. Tal dano, embora não reconhecido expressamente em nenhum dispositivo legal, tem sido amplamente aceite de forma praticamente unânime pela jurisprudência e pela doutrina, sendo que, uma larga maioria da mesma tem considerado que não é sequer necessário fazer-se prova efetiva do montante exato dos prejuízos causados pela não disponibilidade da viatura, uma vez que nos encontramos objetivamente perante um dano no direito de propriedade (mais concretamente de limitação ao direito de propriedade) quando não podemos usufruir plenamente de algo que é nosso. O que por si só é já passível de ser um dano indemnizável que merece a tutela do Direito. Para a jurisprudência que segue este entendimento, basta tão somente que o lesado prove, que em concreto, iria fazer um uso normal do veículo no seu quotidiano diário, sendo que o quantum indemnizatório deveria ser apurado tendo como ponto de referência a fórmula apontada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30.06.2014. Nesta conformidade, refere o douto acórdão vindo de referir que: “Se pretendermos calcular o valor do uso do veículo para o próprio, podemos aproximar-nos desse valor se somarmos o preço de aquisição e as despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo.”: (Custo do veículo + ¼ desse valor) ÷ (365 dias x período de vida) em novo média do veículo = valor diário de uso daquele veículo em concreto

LXI. Exemplo presente no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.03.2012: “Para um veículo que tivesse custado 25.000,00€ e estimado um período de vida de 10 anos, somando as despesas com revisões, reparações e seguros durante esses 10 anos, que se calculam em ¼ relativamente ao preço de compra, teríamos um valor diário de 8,56 € [(25.000,00€ + 6.250,00) ÷ (365 x 10)]. Se o preço de compra tivesse sido de 40.000,00€ o valor subiria para 13,70€; se tivesse sido de 60.000,00€ subiria para 20,55€, etc.”.

LXII. Reportando-nos agora ao caso concreto, temos que o veículo foi adquirido pelo valor de 13.359,16 € (treze mil trezentos e cinquenta e nove euros e dezasseis cêntimos) e estimando um período de vida de 10 anos, somando as despesas com revisões, reparações e seguros durante esses 10 anos, que se calculam em ¼ relativamente ao preço de compra, teríamos um valor diário de 4,58 € [(13.359,16 € + 3.339,79 €) ÷ (365 x 10)]. E será este o valor em que as Rés devem ser condenadas a pagar ao Recorrente durante todo o período em que a viatura permaneceu imobilizada na oficina da 1.ª Ré durante 6 meses, mais o período em que a mesma está imobilizada na garagem do Recorrente. Sendo que neste último caso deverá ser contabilizada um valor diário de 15,63 €, uma vez que foi também esse o valor com que a 1.ª Ré ameaçou o Recorrente com o parqueamento da viatura nas instalações daquela caso este não fosse lá levantar a viatura.

LXIII. Quanto ao pedido reconvencional, limito-me a referir que, a resolução do contrato tem efeitos retroativos, nos termos do artigo 434.º n.º 1 do Código Civil e a falta de conformidade presume-se existente no momento da entrega nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 pelo que o consumidor não tem que pagar qualquer valor pela utilização do bem. cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2011/12/06. Por este motivo não pode o Recorrente ser condenado a pagar a eventual desvalorização comercial do veículo à 1.ª Ré caso os pedidos do Recorrente procedam.

LIV. Além de que a eventual desvalorização comercial do veículo ao longo dos anos é da culpa única e exclusiva da 1.ª Ré, uma vez que a mesma é que é a principal responsável por protelar a resolução voluntária deste assunto durante quase 5 anos.

LXV. Subsumindo os factos ao Direito, nos termos do Código Civil, a coisa vendida pode “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada” ou pode não ter “as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim.” (artigo 913.º, n.º 1 do Código Civil).

LXVI. No caso em apreço estamos indubitavelmente perante uma relação de consumo estabelecida com um consumidor.

LXVII. Importantíssimo ainda neste conspecto é o de nas relações de consumo haver uma regra muito importante diferente do regime geral da lei civil, o qual prevê como direitos do consumidor, (1.º) o de a conformidade ter de ser reposta sem encargos para o consumidor, por meio de reparação ou de substituição, (2.º) o da redução adequada do preço e (3.º) o da resolução do contrato, direitos que o consumidor pode exercer indistintamente, sem qualquer relação de subsidiariedade entre os mesmos.

LXVIII. Existe, portanto, a possibilidade de uma opção livre do comprador, desacompanhada de qualquer outro condicionamento ou pressuposto.

LXIX. Quanto à possibilidade de erro sobre o objeto do negócio. Prevê o artigo 251.º do Código Civil que: O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º.

LXX. Por seu turno, no âmbito no erro da declaração prevê o artigo 247.º do Código Civil que: Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do Recorrente, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.

LXXI. Ora, como já supra referido em 8.º os interlocutores da 1.ª Ré que negociaram com o Recorrente a compra desta viatura sabiam que para ele seria absolutamente essencial adquirir uma viatura com consumos económicos. Ou seja, até 7 litros por cada 100 quilómetros percorridos; sendo que, a frustração dessa expectativa consta jurisprudencialmente como uma das causas de anulação do negócio por verificação do defeito da viatura:

a) Processo n.º 203/14.0TVLSB.L1-2 do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.10.2022:

“1. Estando provado que os dois veículos apresentavam consumos médios de 38 a 40 litros por 100 km e que, nos termos defendidos pela ora apelada, esses consumos não deveriam exceder 32,72 l/100 kms, tal excesso de consumos, em relação ao expectável, consubstancia seguramente um defeito de funcionamento daqueles veículos que, no que mais diretamente releva, encarecia significativamente o custo do respetivo uso e, consequentemente, dos serviços de transporte por eles efetuados (…)

LXXII. Sintetizando,

a) Deverá ser reconhecida a nulidade de sentença por omissão de pronúncia quanto ao pedido principal de reconhecimento de resolução contratual com justa causa promovida pelo Recorrente baseado na verificação de um defeito de fabrico da viatura por consumos de GPL excessivos (artigos 3.º a 31.º das presentes alegações respeitantes à impugnação da matéria de facto)

b) Mantida a lista de factos provados, à exceção dos factos provados n.º 32 e 37 (nos termos supra impugnados nos artigos 32.º a 86.º);

c) Transferir todos os Factos Não Provados para a Lista de Factos Provados à exceção dos Factos Não Provados 51.º e 52.º (nos termos supra impugnados nos artigos 87.º a 248.º da impugnação da matéria de facto).

*

2. Factos

2.1 Factos Provados

O Tribunal a quo considerou assentes os seguintes factos:

1. No dia 3/9/2019, o autor AA adquiriu à ré “A..., S.A.” o veículo de marca Renault ..., com a matrícula ..-ZD-.., do ano de 2019, pelo preço de Eur. 13.359,16.

2. Para pagamento do preço aludido em 1), o autor entregou à ré “A..., S.A.” a quantia de Eur. 6.600,00.

3. E contraiu um empréstimo junto da ré “B... - Sucursal em Portugal, S.A.”, para financiamento da aquisição do veículo aludido em 1), no montante de Eur. 6.759,16, com subscrição de uma livrança.

4. Nos termos do acordo aludido em 3), o autor e a ré “B... – Sucursal em Portugal, S.A.” convencionaram que o empréstimo ali mencionado seria liquidado em sessenta prestações, vencendo-se a primeira prestação em 3/9/2019.

5. O autor decidiu adquirir o veículo aludido em 1) para assegurar as suas deslocações no trajecto trabalho/casa e para efectuar passeios nos seus tempos livres.

6. O autor optou por adquirir o veículo aludido em 1) devido ao seu preço e devido ao seu baixo consumo de combustível.

7. Logo nos primeiros dias após a compra do veículo aludido em 1), o autor reportou à ré “A..., S.A.” que considerava que se verificava um consumo anormal e excessivo de GPL.

8. Nessas circunstâncias, em virtude de o veículo ser novo, os serviços da ré “A..., S.A.” referiram ao autor que mantivesse a circulação normal durante o período de “rodagem” e que após esse período se verificaria se estava a verificar-se um consumo superior ao expectável.

9. No decurso da sua utilização por parte do autor, o veículo aludido em 1) apresentou um “engasgar” constante e sistemático no funcionamento a gás, assobio do turbo e fecho da porta traseira solto.

10. Nessas circunstâncias, o autor remeteu à ré “A..., S.A.”, que a recebeu, a mensagem de correio electrónico datada de 18/11/2019, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. No dia 5/12/2019, o autor levou o veículo aludido em 1) às instalações da ré “A..., S.A.”, em Gondomar, para reparação, sendo que o autor se queixou que a viatura apresentava um consumo exagerado de combustível e de um “assobio” anormal existente no turbo.

12. Nessas circunstâncias, os funcionários da ré “A..., S.A.” informaram o autor que não havia em stock nenhum dispositivo/aparelho turbo naquelas instalações, havendo necessidade de realizar a sua encomenda.

13. Nessas circunstâncias, a pedido expresso do autor e fora do plano de manutenção estabelecido pela marca, foi efectuada uma mudança de óleo e do filtro do veículo aludido em 1).

14. Sendo que o autor assumiu o pagamento a suas expensas da intervenção aludida em 13), no valor de Eur. 164,27.

15. No dia 19 de Dezembro de 2019, a viatura aludida em 1) regressou novamente às mesmas instalações da ré “A..., S.A.”, tendo então sido substituído o turbo.

16. Na sequência da substituição do turbo, o barulho anormal do veículo aludido em 1) desapareceu.

17. No dia 29/12/2019, o autor teve um furo no pneu traseiro esquerdo do veículo aludido em 1).

18. Nessas circunstâncias, o veículo aludido em 1) foi transportado por reboque pelos serviços de assistência da ré “A..., S.A.”, uma vez que foi impossível resolver o problema com o kit de reparação do veículo.

19. Nessas mesmas circunstâncias, foi necessário substituir os dois pneus traseiros do veículo aludido em 1).

20. Sendo que foi necessário encomendar pneus novos diferentes e de outra marca, dado que a oficina da ré “A..., S.A.” não dispunham em stock de pneus iguais.

21. Nessas circunstâncias, o autor voltou a reclamar junto da ré que o veículo aludido em 1) apresentava consumos médios de GPL superiores aos por si expectáveis.

22. Nessas mesmas circunstâncias, o autor deixou o veículo aludido em 1) nas instalações da ré “A..., S.A.”, sustentando que o mesmo apresentava consumos médios excessivos de GPL e solicitando a resolução dessa situação.

23. A viatura aludida em 1) permaneceu nas instalações da ré “A..., S.A.” até 18/6/2020, data em que o autor removeu a viatura desse local.

24. O autor procedeu à remoção mencionada em 23) em virtude de ter sido advertido pela ré “A..., S.A.” de que se não o fizesse lhe passariam a ser cobradas despesas de parqueamento da viatura.

25. No dia 18/6/2020, ao proceder ao levantamento da viatura aludida em 1), o autor constatou que a mesma apresentava danos em ambas as portas da frente e no pára-choques traseiro.

26. A ré “A..., S.A.” procedeu à reparação dos danos aludidos em 25), sem custos para o autor.

27. O autor solicitou informações à ré “A..., S.A.” no sentido de esta o informar de quais foram exatamente os procedimentos e testes efetuados à sua viatura para verificação da conformidade dos consumos e o respetivo resultado dos mesmos, tendo ainda solicitado que o informassem dos consumos registados em teste e respetivas condições de ensaio.

28. A ré “A..., S.A.” nunca prestou ao autor as informações aludidas em 27).

29. Nem realizou ensaios e testes de consumo à viatura aludida em 1).

30. No dia 16/7/2020, o autor comunicou às rés a sua decisão de resolver respetivamente os contratos de compra e venda e financiamento celebrado com as mesmas, conforme documentos juntos com a petição inicial sob os n.ºs 16 e 17, cujo teor se dá por reproduzido.

31. Desde a data aludida em 25), o autor mantém a viatura aludida em 1) imobilizada na sua garagem.

32. Em virtude de entender que o veículo aludido em 1) apresenta um consumo excessivo de GPL e em virtude de as rés não reconhecerem tal situação, o autor sente-se frustrado, ansioso e desgastado.

33. Em virtude da aquisição do veículo aludido em 1), o autor procedeu ao pagamento da quantia de Eur. 240,76, referente ao imposto de circulação automóvel dos anos de 2019 e de 2020.

34. Em virtude da celebração do acordo de financiamento aludido em 3), o autor suportou encargos administrativos no montante global de Eur. 599,42.

35. A ré “A..., S.A.” recusou discutir o litígio com o autor relativo à aquisição do veículo aludido em 1) no Tribunal Arbitral de Consumo.

36. O veículo aludido em 1) foi importado para Portugal por parte da interveniente “A..., S.A.”.

37. Na sequência das diligências efectuadas pela ré “A..., S.A.” em virtude das reclamações apresentadas pelo autor, o aparelho de diagnóstico da marca emitiu um relatório de operacionalidade e conformidade de todos os componentes do veículo aludido em 1).

38. O autor utilizou o veículo aludido em 1), tendo percorrido com o mesmo 10.379 quilómetros.

39. O veículo aludido em 1) apresenta um consumo médio de GPL de 8,78 litros por 93,7 quilómetros percorridos.

2.2. Factos Não Provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

a.Nas circunstâncias aludidas em 1), os funcionários da ré “A..., S.A.” tenham assegurado ao autor que o veículo de matrícula ..-ZD-.. não apresentava quaisquer qualidades diferentes das que vinham publicitadas pelas rés.

b. Nas circunstâncias aludidas em 1), os funcionários da ré “A..., S.A.” soubessem da essencialidade dos baixos consumos de GPL na escolha efectuada pelo autor em adqurir o veículo de matrícula ..-ZD-.., designadamente que o mesmo pretendia um veículo que apresentasse um consumo até 6 litros de GPL por cada quilómetro percorrido.

c. Nas circunstâncias aludidas em 1), nos canais institucionais de divulgação das rés viesse descrito que o modelo, versão e motorização do veículo aludido em 1) realizava consumos médios entre os 5,6 e os 5,8 litros de consumo misto e de 7,0 litros de GPL por cada 100 quilómetros percorridos.

d. O veículo aludido em 1) tenha realizado consumos médios de GPL superiores aos valores publicitados pelas rés e aos consumos realizados por outros veículos do mesmo modelo, versão e motorização.

e. Em consequência da sua circulação, o veículo aludido em 1) tenha efectuado consumos médios superiores a 10 litros de GPL por cada 100 quilómetros percorridos.

f. Nas circunstâncias aludidas em 12), os funcionários da ré “A..., S.A.” tenham referido ou admitido que a questão de mau funcionamento do turbo poderia concorrer para o problema dos consumos exagerados de GPL.

g. A viatura aludida em 1) tenha permanecido nas instalações da ré “A..., S.A.” no período temporal referido em 23) por forma a que a mencionada ré conseguisse resolver em definitivo a questão associada aos consumos exagerados de GPL.

h. Se o autor soubesse que o veículo aludido em 1) teria um consumo médio de GPL superior a 7,0 litros por cada 100 quilómetros percorridos nunca teria o mesmo.

i. Durante os dias em que não teve veículo de substituição, o autor tenha dependido de terceiros para ir trabalhar e para assegurar as suas deslocações lúdicas.

j. Nessas circunstâncias, por inúmeras vezes, o autor tenha tido de andar de táxi, uber ou metro.

k. Em virtude de manter a viatura aludida em 1) imobilizada na sua garagem, o autor tenha de deixar outros veículos do agregado familiar ao ar livre, na via pública.

l. Actualmente, o valor comercial do veículo aludido em 1) ascenda ao valor de Eur. 7.800,00.

m. Em consequência da utilização efectuada pelo autor, o veículo aludido em 1) tenha sofrido uma desvalorização do seu valor comercial no montante de Eur. 5.338,00.



2.3 Convicção do Tribunal

O Tribunal a quo considerou provados dos seguintes factos:

“O Tribunal fundamentou a sua resposta quanto à factualidade alegada na apreciação critica e conjugada da prova produzida nos autos, analisada à luz das regras da experiência comum e da lógica, sendo que a prova testemunhal se encontra devidamente gravada.

Assim, para determinação da matéria de facto, o Tribunal atendeu ao depoimento de parte do autor AA, técnico de manutenção, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude da sua intervenção directa nos mesmos.

Prestou o seu depoimento de forma clara, mas visivelmente parcial, sendo notória a intenção de corroborar a versão dos factos sustentada na petição inicial.

Pronunciou-se quanto às circunstâncias em que adquiriu o veículo automóvel mencionado nos autos, designadamente quanto aos motivos que determinaram a escolha desse modelo.

Referiu que o factor determinante da aquisição foi o baixo consumo inerente ao mesmo, reconhecendo que nunca tinha sido proprietário de um veículo movido a GPL.

Afirmou que um amigo tinha uma viatura similar, esclarecendo que já tinha conduzido tal viatura, tendo constatado os consumos por esse facto.

A este propósito, importa salientar que não foi produzida qualquer prova credível que ateste que o veículo detido pelo seu amigo e o veículo adquirido pelo autor sejam da mesma versão e/ou da mesma motorização.

Tal circunstancialismo, por si só, permite questionar a expectativa perfilhada pelo autor de que ambos os veículos apresentassem o mesmo consumo médio.

Acresce que não se provou que o documento junto com a petição inicial sob o n.º 5 se reporte ao modelo, versão e motorização do veículo que veio a ser adquirido pelo autor, nem se provou que tenha sido nesse documento que o autor baseou a sua decisão de adquirir o veículo em apreço nos autos.

Por outro lado, apesar de ter referido que a testemunha CC mencionou o consumo médio de GPL do veículo, acabou por reconhecer que apenas lhe foi referido que um depósito daria para cerca de 400 Km.

Pronunciou-se quanto aos diversos problemas verificados no veículo, bem como à natureza das intervenções efectuadas pela ré A... para solucionar tais questões.

Reconheceu que a mudança de óleo e de filtros foi efectuada a seu pedido expresso, fora do plano de manutenção preconizado, assumindo que o respectivo pagamento é da sua responsabilidade.

Descreveu os contactos estabelecidos com as rés a propósito do presente litígio.

O tribunal atendeu ainda ao depoimento do perito EE que esclareceu as condições em que procedeu à realização da prova pericial, esclarecendo o percurso percorrido e o combustível consumido, corroborando e explicitando teor do documento por si elaborado.

Saliente-se a este propósito que o autor não só não impugnou tempestivamente o teor desse relatório, como não logrou contraditar de forma coerente e lógica os esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito, designadamente quanto à correcção dos cálculos ali constantes.

Para fundamentação da matéria de facto, o tribunal atendeu igualmente ao depoimento das testemunhas:

- FF, contabilista, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ser mulher do autor.

Prestou o seu depoimento de forma clara, revelando que acompanhou o marido numa das deslocações ao stand da ré em Gondomar.

Esclareceu os motivos que presidiram à escolha do veículo em apreço, referindo que tal se ficou a dever aos baixos consumos do mesmo.

Pronunciou-se quanto aos problemas verificados no veículo, referindo que o autor manifestava um constante descontentamento com o consumo da viatura.

Esclareceu as consequências psicológicas que advieram para o autor em resultado dos factos descritos nos autos.

- BB, técnico de próteses dentárias, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ser amigo do autor.

Depôs de forma espontânea, referindo que é proprietário de um veículo ..., do ano de 2016.

Referiu que no seu veículo consegue obter um consumo médio de cerca de 7,0 por cada 100 quilómetros percorridos.

Saliente-se que - como supra se referiu - não resultou demonstrado que ambos os veículos sejam da mesma versão e motorização, o que invalida a conclusão de que os consumos médios tivessem de ser similares.

Pronunciou-se quanto ao modo de condução do autor, que considerou normal e adequada.

Descreveu o desagrado manifestado pelo autor em relação à viatura adquirida à ré, pronunciando-se quanto às consequências psicológicas daí decorrentes.

- CC, comercial no grupo C..., que revelou ter conhecimento dos factos em virtude do exercício da sua actividade profissional.

Prestou o seu depoimento de forma coerente, espontânea e imparcial, logrando convencer o tribunal da veracidade das suas declarações.

Referiu que na data em que o autor adquiriu a viatura aludida nos autos, trabalhava na ré, tendo sido a comercial que atendeu e acompanhou o autor no processo de aquisição.

Esclareceu que nunca deu indicação ao autor do consumo médio de GPL, salientando que tal consumo depende de diversos factores externos ao próprio veículo, motivo pelo qual nunca se vinculava a consumos médios.

Referiu ainda que o consumo médio de GPL indicado pelo autor não é compatível com as características do veículo em apreço nos autos.

Pronunciou-se quanto aos contactos estabelecidos com o autor, afirmando que nunca discutiu com este a questão do consumo médio de GPL do veículo, salientando que a questão normalmente ponderada pelos adquirentes do mencionado veículo está associada ao preço do mesmo e não ao seu consumo.

- GG, recepcionista, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude do exercício da sua actividade profissional, designadamente em virtude de ter trabalhado para a ré A....

Depôs de forma isenta e credível, referindo ter contactado com o autor aquando das reclamações apresentadas por este.

Esclareceu as queixas apresentadas pelo autor, bem como as diligências efectuadas para aferir se a viatura padecia de qualquer anomalia.

Referiu que nunca foi apurado que o veículo tivesse um consumo excessivo de GPL.

- DD, engenheiro mecânico, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de trabalhar para a ré A..., sendo o responsável da oficina.

Prestou o seu depoimento de forma séria e espontânea, pronunciando-se quanto às reclamações apresentadas pelo autor e quanto às intervenções efectuadas com vista a apurar se o veículo em apreço padecia de qualquer anomalia.

Reconheceu que nunca foram efectuados testes de consumo ao veículo e explicou os motivos subjacentes a tal facto, esclarecendo que os testes de diagnóstico efectuados atestaram a total conformidade da viatura.

- HH, gestor de clientes, que revelou ter conhecimento em virtude de ser funcionário da ré B....

Depôs de forma clara e coerente, pronunciando-se quanto ao teor e às condições do contrato de financiamento celebrado com o autor.

Descreveu ainda os contactos estabelecidos com o autor a propósito do presente litígio.

- II, técnico especialista, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ser funcionário da chamada A....

Prestou o seu depoimento de forma tecnicamente fundamentada e credível, logrando convencer o tribunal da veracidade das suas declarações.

Esclareceu que o consumo médio dos veículos depende de múltiplos factores, sendo que os valores indicados pelas marcas são sempre meramente indicativos.

Afirmou ainda que os valores indicados correspondem a condições ideais de circulação, normalmente controladas em laboratório, sendo insusceptíveis de ser reproduzidas na vida diária.

Referiu que o diagnóstico efectuado ao veículo não atestou qualquer anomalia.

Pronunciou-se ainda quanto ao modo de obtenção do certificado de conformidade e dos valores aí indicados, que assumem sempre um carácter médio.

O tribunal teve também em consideração o teor dos documentos juntos ao processo, designadamente o auto de entrega junto com a petição inicial (que atesta a data da celebração do contrato de compra e venda, bem como as condições de pagamento do preço ali estipulado), o contrato junto com a petição inicial (que permite apreender os termos do acordo de financiamento celebrado pelo autor com vista à aquisição do veículo em apreço nos autos), a livrança junta com a petição inicial (referente ao contrato de financiamento supra aludido), as facturas juntas com a petição inicial (que atestam os custos suportados pelo autor em consequência da celebração do contrato de financiamento aludido na matéria de facto), o print publicitário junto com a petição inicial (que, conforme supra se referiu, não se comprovou que se reporte ao modelo e versão em apreço nos autos), as mensagens, as cartas e as facturas juntas ao processo (que atestam a data e o teor das reclamações apresentadas pelo autora, das respostas das rés, das intervenções efectuadas no veículo aludido nos autos e os custos suportados pelo autor com tais intervenções; tais documentos atestam ainda as circunstâncias e os fundamentos em que o autor procedeu à resolução dos contratos supra mencionados), o documento junto com a petição inicial sob o n.º 18 (que permite aferir os motivos pelos quais não foi aceite a competência do tribunal arbitral), os documentos juntos com a contestação da ré A... (que comprovam as intervenções efectuadas no veículo supra mencionado), bem como o certificado de conformidade junto ao processo (que permite determinar as características e os parâmetros técnicos do veículo em apreço).

A matéria de facto não provada assentou na total ausência de prova, na falta de credibilidade da prova produzida ou na sua contradição com o teor dos documentos juntos ao processo ou dos depoimentos prestados nos termos supra referidos.

Com efeito, não foi produzida qualquer prova credível que ateste qual o consumo médio de GPL anunciado ou publicitado pela ré aquando da celebração do contrato, nem se provou que a ré tenha mencionado expressamente qualquer valor de consumo médio de GPL.

De facto, tal factualidade foi expressamente infirmada pela testemunha CC.

Por outro lado, resultou da prova produzida que os consumos médios anunciados constituem sempre meras estimativas, correspondentes a condições ideais de circulação, insusceptíveis de serem reproduzidas na vida diária.

Na verdade, tais indicações, correspondem a meras informações de carácter publicitário, emitidas no âmbito do denominado dolus bonus, sendo do conhecimento comum e generalizado que tais indicações são susceptíveis de variações, como por regra consta dos próprios anúncios publicitários.

Assim, independentemente da expectativa subjectiva do autor, não se provou que a mesma tenha sido gerada pelas rés ou que estas tenham contribuído para as mesmas.

Com efeito, não se provou que o veículo adquirido pelo autor fosse igual ao modelo, versão e motorização do veículo de que o seu amigo era proprietário.

Por outro lado, nenhuma prova foi produzida que permita afirmar que o veículo em apreço nos autos padeça de qualquer anomalia, defeito ou desconformidade, nem que o autor o tenha adquirido por erro quanto às suas características.

Saliente-se ainda que a circunstância de o certificado de conformidade do veículo mencionar valores de consumo médio distintos dos obtidos com a circulação diária da viatura, por si só não traduz qualquer desconformidade do veículo.

Na verdade, os consumos ali mencionados são valores médios, obtidos em condições especificas, optimizadas e distintas da circulação diária.

De facto, os ensaios e os valores em causa destinam-se a permitir a obtenção da homologação* UE no que respeita às emissões, sendo que o fabricante deve demonstrar que o veículo cumpre os requisitos estabelecidos no respectivo regulamento comunitário quando ensaiado segundo os procedimentos especificados (que não correspondem às condições de circulação diária).

Saliente-se ainda que a diferença de valores entre o especificado no referido certificado e os valores constantes do relatório pericial efectuado nos autos é compatível com as condicionantes externas ao veículo (técnica de condução, condições da via de rodagem, características do trânsito) que condicionam o efectivo consumo verificado).

Com efeito, como explicitou de forma técnica a testemunha II, os valores obtidos com a circulação do veículo ainda se encontram dentro dos limites constantes do certificado de conformidade.

O Tribunal não deu como provado o teor de qualquer outro artigo dos articulados por os mesmos encerrarem em si matéria irrelevante para a decisão da causa, matéria conclusiva ou de direito.”

*

3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:

Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:

- Da nulidade da decisão;

- Impugnação da matéria de facto;

- Do mérito da decisão.

*

4. Conhecendo do mérito do recurso:

4.1 Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Invoca, desde logo, o Apelante a nulidade da sentença por alegada omissão de pronúncia quanto à apreciação do pedido principal.

Vejamos então.

Segundo o disposto no artigo 615º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Esta previsão legal está em consonância com o comando do artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Importa, no entanto, não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.

De facto, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objecto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido pressuposto pelo citado artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Assim, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Neste sentido, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis,[1] refere este Ilustre Professor, que “uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.”

(…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Este entendimento tem, como é consabido, sido corroborado, há muito, pela jurisprudência que sempre o acolheu defendendo que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, porquanto o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos invocados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se “sobre as questões que devesse apreciar” ou sobre as “questões de que não podia deixar de tomar conhecimento”[2].

Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respetiva causa de pedir - cfr. artigo 581º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que consagra o denominado princípio da substanciação) e das excepções deduzidas.

Terá, pois, de apreciar e decidir todas as questões trazidas aos autos pelas partes – pedidos formulados, excepções deduzidas, (…) - e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.

A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas. Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou “error in iudicando”, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.

Feitas estas considerações, cremos que, in casu, não existe qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida.

De resto, ao invés do que preconiza o Apelante, a singela leitura da sentença deixa evidente que o Tribunal a quo não deixou de se pronunciar sobre qualquer questão, muito menos, ao invés do invocado pelo Recorrente, “quanto ao pedido principal”.

Com efeito, sobre a referida matéria, a sentença em crise, de forma expressa, refere:

“Porém, considerando a factualidade provada, constata-se que o autor não logrou demonstrar a factualidade em que alicerçou a sua pretensão.

Com efeito, incumbindo-lhe o respectivo ónus de prova, nos termos do artigo 342º do Cód. Civil, o autor não logrou provar que o veículo por si adquirido apresente qualquer anomalia de funcionamento ou desconformidade quanto às qualidades e ao desempenho que podia razoavelmente esperar.

Em suma, entendo que o autor não logrou demonstrar os pressupostos em que baseou a sua pretensão, sendo que o veículo não padece de qualquer deficiência que afecte o seu funcionamento, nem se verifica qualquer situação que desvalorize o mesmo.

Assim, conclui-se que não estão reunidos os requisitos para que a presente acção possa

proceder, quer porque não se provou a existência de qualquer anomalia ou desconformidade do veículo, quer porque não se provou que o autor tenha agido em erro imputável às rés.

Nessa medida, não só não se verificam os pressupostos para julgar válida a resolução operada, como não estão presentes os requisitos legais para anular os negócios jurídicos questionados.”

Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, resulta evidente que não houve qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida, improcedendo assim, neste âmbito, a nulidade arguida.

4.2. Da impugnação da Matéria de facto

O Apelante, em sede recursiva, manifesta-se, ainda, discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, defendendo que devem ser dados como não provados os factos provados n.ºs 32 e 37, bem como devem ser considerados como provados os factos dados como não provados, à excepção dos factos n.ºs 51 e 52 (alíneas l) e m)).

Refira-se, no entanto, que o Recorrente, na síntese das conclusões por si apresentadas, alega que devem ser considerados como não provados os factos n.ºs 32 e 37, fazendo referência aos artigos 32.º a 86.º das respectivas alegações.

Ao longo das alegações por si apresentadas e especificamente nos artigos referidos, bem como das conclusões apresentadas, todavia, o Apelante não coloca em causa o facto provado n.º 32, mas antes o facto provado n.º 39, que consiste no seguinte:

“39 - O veículo aludido em 1) apresenta um consumo médio de GPL de 8,78 litros por 93,7 quilómetros percorridos”.

Deste modo, a referida menção nas conclusões das alegações ao facto provado n.º 32 terá sido, certamente, por lapso, razão pela qual a apreciação da impugnação versará, apenas, relativamente aos factos provados n.ºs 37 e 39.

Assim, tendo presentes os elementos probatórios e demais motivação, vejamos, então, se na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelo apelante.

Adiantamos, desde já, que o Senhor Juiz a quo fundamentou a sua decisão de forma rigorosa, bem sistematizada, não contornando as questões que se colocavam, invocando sempre com ponderação as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo.

Afigura-se-nos, assim, que a sua apreciação, efectivada no contexto da imediação da prova, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.

De facto, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.

Conforme atrás referimos, no caso ajuizado, o Apelante pretende que a matéria de facto seja alterada nos pontos atrás mencionados, que vamos passar a analisar de forma mais pormenorizada.

- Do ponto 37º dos factos dados como provados

Consta do ponto 37º dos factos provados que:

“Na sequência das diligências efectuadas pela ré “A..., S.A.” em virtude das reclamações apresentadas pelo autor, o aparelho de diagnóstico da marca emitiu um relatório de operacionalidade e conformidade de todos os componentes do veículo aludido em 1).”

Pugna o Apelante que o referido facto seja dado como não provado.

Vejamos então.

Conforme resulta dos autos, concede o Apelante a emissão do referido relatório, defendendo, porém, que dele não se pode extrair que não existia qualquer anomalia nos consumos de GPL da viatura.

Porém, em sede de contestação da Apelada A..., S.A., foi junto o documento n.º 1, mencionado pelo Recorrente, sendo que o referido documento não foi objecto de impugnação.

Ora, dispõe o artigo 374.º, n.º 1, do Código Civil, que: “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.”

Acrescenta o artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil que “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.”

Afigura-se-nos, assim, à luz da prova carreada aos autos, não se vislumbrar fundamento para alterar a resposta dada ao referido ponto 37 dos factos provados sendo, por isso, de manter a referida resposta.

- Do ponto 39º dos factos provados

Consta do ponto 39º que:

“39. O veículo aludido em 1) apresenta um consumo médio de GPL de 8,78 litros por 93,7 quilómetros percorridos.”

Sustenta a sua pretensão de alteração, que não concretiza devidamente, na equivalência proporcional entre ambas as proporções de consumo por quilómetros percorridos.

Como é consabido, o que deve ser carreado para os factos provados ou não provados são os factos, sendo que os factos conclusivos não devem, nem podem ser carreados para a matéria de facto, seja provada ou não provada.

Ora, no caso vertente, tendo sido percorridos, no teste de estrada, 93,7 km, afigura-se-nos que o Tribunal a quo andou bem em carrear para o elenco dos factos provados que “O veículo aludido em 1) apresenta um consumo médio de GPL de 8,78 litros por 93,7 quilómetros percorridos.”

Ou seja, tendo o veículo, no teste de estrada, percorrido uma distância de 93,7 km, nunca poderia o Tribunal a quo, por ausência de prova, especular sobre qual seria o consumo percorrida qualquer outra distância.

Com efeito, os consumos, efectivamente, verificados de qualquer viatura estão dependentes de diversos factores externos (como por exemplo, o tipo de condução realizada, os circuitos percorridos, o número de pessoas a bordo do veículo, as condições atmosféricas, etc.), o que, naturalmente, os fazem variar dos consumos obtidos noutras circunstâncias.

Assim, também nenhuma censura nos merece a resposta ao facto provado 39º da sentença, devendo, em consequência, manter-se inalterado.

- Dos factos não provados sob os pontos 40 a 50 da sentença (alíneas a) a k)

Consta dos referidos pontos que:

“a.Nas circunstâncias aludidas em 1), os funcionários da ré “A..., S.A.” tenham assegurado ao autor que o veículo de matrícula ..-ZD-.. não apresentava quaisquer qualidades diferentes das que vinham publicitadas pelas rés.

b. Nas circunstâncias aludidas em 1), os funcionários da ré “A..., S.A.” soubessem da essencialidade dos baixos consumos de GPL na escolha efectuada pelo autor em adquirir o veículo de matrícula ..-ZD-.., designadamente que o mesmo pretendia um veículo que apresentasse um consumo até 6 litros de GPL por cada quilómetro percorrido.

c. Nas circunstâncias aludidas em 1), nos canais institucionais de divulgação das rés viesse descrito que o modelo, versão e motorização do veículo aludido em 1) realizava consumos médios entre os 5,6 e os 5,8 litros de consumo misto e de 7,0 litros de GPL por cada 100 quilómetros percorridos.

d. O veículo aludido em 1) tenha realizado consumos médios de GPL superiores aos valores publicitados pelas rés e aos consumos realizados por outros veículos do mesmo modelo, versão e motorização.

e. Em consequência da sua circulação, o veículo aludido em 1) tenha efectuado consumos médios superiores a 10 litros de GPL por cada 100 quilómetros percorridos.

f. Nas circunstâncias aludidas em 12), os funcionários da ré “A..., S.A.” tenham referido ou admitido que a questão de mau funcionamento do turbo poderia concorrer para o problema dos consumos exagerados de GPL.

g. A viatura aludida em 1) tenha permanecido nas instalações da ré “A..., S.A.” no período temporal referido em 23) por forma a que a mencionada ré conseguisse resolver em definitivo a questão associada aos consumos exagerados de GPL.

h. Se o autor soubesse que o veículo aludido em 1) teria um consumo médio de GPL superior a 7,0 litros por cada 100 quilómetros percorridos nunca teria o mesmo.

i. Durante os dias em que não teve veículo de substituição, o autor tenha dependido de terceiros para ir trabalhar e para assegurar as suas deslocações lúdicas.

j. Nessas circunstâncias, por inúmeras vezes, o autor tenha tido de andar de táxi, uber ou metro.

k. Em virtude de manter a viatura aludida em 1) imobilizada na sua garagem, o autor tenha de deixar outros veículos do agregado familiar ao ar livre, na via pública.”

Pugna o Apelante que sejam considerados provados os factos atrás enunciados.

Defende que o veículo em apreço efectua consumos superiores aos esperados baseando-se, para o efeito, no depoimento da testemunha II, bem como no documento n.º 2 junto com o requerimento da 1.ª Ré de 12.09.2022 (ref.ª citius 43227885), correspondente ao certificado oficial de conformidade e homologação.

Alicerça-se, assim, no referido documento e nos consumos médios que este prevê para, desde logo, fundamentar a sua pretensão de ver declarado que os efectivos consumos do veículo são superiores ao esperado e, consequentemente, defende que o veículo padece de algum defeito/anomalia, especificando que os valores que constam do documento não se aproximam da realidade verificada, sendo o resultado do teste de condução realizado no âmbito dos autos apenas semelhante ao que consta do documento para percursos urbanos.

Vejamos então.

Perscrutadas as alegações de recurso, não se vislumbra, desde logo, a concreta identificação, relativamente a cada um dos factos não provados da sentença, dos exactos meios de prova que impunham decisão distinta, nem em que medida tal seria imposto.

De resto, a genérica solicitação de “transferir todos os factos não provados para a lista de factos provados” não cumpre os ónus previstos pelo artigo 640.º, n.º 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil.

Sempre se dirá, no entanto, que não existe fundamento para alteração relativamente à matéria de facto não provada.

Com efeito, não ficou provado que os consumos que alegadamente se verificam na viatura devem ser considerados como anormais.

De facto, resultou claro do depoimento da testemunha II, que os alegados consumos sempre estariam dentro dos valores expectáveis, mesmo de acordo com o certificado de conformidade.

A este propósito, salienta-se, designadamente, o seguinte excerto do depoimento da testemunha II, na sessão de julgamento realizada a 19.02.2024, que a seguir se transcreve (gravação da audiência, ficheiro “Diligência_293-21.0T8MAI_2024-02-19_10-44-30”):

“Minutos: 00:21:33 a 00:25:46

Juiz “E então este veículo qual era o consumo de GPL que apresentava?”

Testemunha II: “O consumo de GPL que apresentava em que circunstância

Doutor?”

Juiz: “Na sua circulação, desde que o autor o comprou.”

Testemunha II: “O que foi referido no documento de trabalho que nos foi enviado pelo concessionário, relatava um consumo de 10 litros. Não obstante, o concessionário refere nesse mesmo documento, a solicitar apoio à marca, que não confirma esse consumo.”

Juiz: “E se se comprovasse esse consumo, isso era um consumo excessivo ou não?”

Testemunha II: “Depende do tipo de utilização da viatura, poderia não ser.”

Juiz: “Mas estamos aqui a ponderar um consumo normal. Dito normal. E eu percebo que me vá dizer que isso implica alguma variação, mas o que eu digo é: para este tipo de veículo um consumo de 10 litros de GPL aos 100 km corresponde a um consumo expectável, superior ao expectável ou inferior ao expectável?”

Testemunha II: “No limite eu diria que está no expectável. No limite. Máximo.

Sim.”

Juiz: “Então se um cliente se dirige a um concessionário ou a uma oficina e se queixa que está a consumir 10 litros de GPL no seu entendimento o que deve ser dito ao cliente é que

isso não é consumo excessivo, mas sim um consumo normal e expectável.”

Testemunha II: “O que eu posso dizer é que analisando a viatura e aos fatores de utilização condução da viatura pode ser o caso.”

Juiz: “Mas porque é que é necessário analisar a viatura e os componentes?”

Testemunha II: “É necessário analisar a viatura e o tipo de utilização da viatura para perceber se pode existir alguma situação que esteja a influenciar o consumo. Por exemplo, uma coisa tão simples como ter a pressão dos pneus baixa vai influenciar significativamente o consumo do veículo.”

Juiz: “Sim, mas repare, se alguém se dirige a uma oficina e aponta um valor que é tido como um valor adequado porquê estar a fazer análises para ver se pode haver influência?”

Testemunha II: “Como lhe digo Doutor. É um valor que pode ser considerado no limite. No entanto, temos que analisar naturalmente a situação que nos é apresentada uma vez que os consumos da viatura preveem, nomeadamente o certificado de conformidade, pode ter um consumo, como referi, na fase baixa, de 9,4 litros, está no teste, não há dúvidas sobre isso. Mas também há fases de utilização do veículo em que os consumos podem ser mais baixos. E, portanto, não podemos deixar de analisar a situação que nos é apresentada e tentar garantir que todas as condições do veículo remetem para o consumo mais baixo possível, uma vez que também é uma questão, para além da utilização, uma questão ambiental que também é importante, em garantir que a viatura está efetivamente em conformidade”

Juiz: “Então estando em conformidade e apresentando na mesma o consumo de 10 litros…”

Testemunha: “Se está tudo em conformidade, quer dizer que, muito possivelmente, esse consumo advém do tipo de utilização do veículo. Ou seja, o consumo está, diria eu, no limite mais elevado e expectável. Tal como referi, 9,4 litros é a fase baixa de utilização do veículo. Fase baixa poderá ser o circuito urbano com velocidades mais baixas. Fase de arranque e paragem. Portanto, essa situação pode estar associada à utilização do veículo.

Mas é isso que nos cabe como técnicos e nomeadamente à oficina tentar aferir junto do cliente para comprovar que efetivamente a viatura está toda em conformidade como julgo que foi aqui o caso, uma vez que foram feitos diversos testes que verificaram que estava tudo em conformidade. Nem foi confirmado como se referiu o consumo de 10 litros dito ao concessionário”.

Assim, como é explicado de forma clara pela testemunha II, os consumos mencionados no referido certificado de conformidade do veículo são apenas valores médios, obtidos em condições especificas e distintas da circulação diária, porquanto realizados segundo procedimentos específicos destinados à obtenção da homologação.

Razão pela qual é natural que os valores de consumo obtidos na circulação diária se destoem minimamente daqueles mencionados no referido certificado.

Com efeito, à luz das regras da experiência comum, os consumos efectivamente verificados de qualquer viatura estão dependentes de diversos factores externos (como por exemplo, o tipo de condução realizada, os circuitos percorridos, o número de pessoas a bordo do veículo, as condições atmosféricas, etc.). O que, naturalmente, os fazem variar dos consumos previstos no relatório de conformidade, cujos testes foram efectuados em condições que não abarcam todas as possíveis condicionantes de uma utilização diária, ela própria potencialmente variável.

De resto, o próprio Recorrente, nas conclusões das alegações em apreço, admite que existem variantes que podem pôr em causa os consumos da viatura.

Além disso, a testemunha II expressa apenas a sua opinião relativamente ao que deve ser transmitido ao cliente, do ponto de vista técnico, em termos de valor comercial de consumos, esclarecendo que a respetiva opinião é transversal a todas as viaturas a combustão, o que resulta do seguinte excerto do depoimento:

“Minutos 00:28:35 a 00:29:15

Juiz: “Enquanto técnico, e tendo acesso a estes documentos, qual acha que devia ser um valor que um comercial empenhado em fazer a venda deveria transmitir ao cliente?”

Testemunha II: “Eu creio que o mais indicado, do ponto de vista técnico, seria ter como base um ciclo combinado do veículo que se tende a aproximar o mais possível da utilização quotidiana, sempre explicando ao cliente que isto não é para esta viatura, é para todas as viaturas a combustão que naturalmente a utilização do veículo vai definir o consumo final do mesmo”.

Assim, resulta do depoimento prestado pela testemunha II, especialista em diagnóstico automóvel, que o valor de consumo da viatura em apreço se encontra dentro dos padrões normais não sendo, consequentemente, excessivo.

Defende, ainda, o Apelante que seja dado como provado que abordou a questão dos baixos consumos junto dos funcionários da 1.ª Ré e que o veículo em questão tinha consumos superiores aos que lhe foram por estes assegurados.

A este respeito, importa sublinhar que a testemunha CC afirmou que, apesar de se recordar que “fechou” o negócio com o Recorrente, não se recorda, em função do tempo decorrido, de o Apelante ter alegadamente manifestado preocupação com os consumos da viatura.

Com efeito, resulta única e exclusivamente do depoimento desta testemunha que, na generalidade dos casos, quando realiza uma venda, explica os consumos médios preconizados pela marca, frisando que são consumos médios, dependentes de vários parâmetros.

Resulta, ainda, das declarações prestadas pelo Recorrente na audiência de julgamento realizada a 15.01.2024 que se transcreve infra (gravação da audiência, ficheiro “Diligencia_293-21.0T8MAI_2024-01-15_10-06-07”) que nunca lhe foi abordada pelos funcionários da 1.ª Ré a questão dos consumos da viatura.

Minutos 00:32:50 a 00:33:20

Advogado: “Nessa conversa, com essa senhora, nunca lhe foi dito o que era expectável, pelo menos um consumo aproximado/estimado dessa viatura, em termos de valores?”

Recorrente: “As pessoas normalmente furtavam-se ao valor de consumo. Na altura, falavam que podia fazer 400km com um depósito de combustível”.

Minutos a 00:51:26 a 00:52:03

Advogada da 2.ª Ré: “Voltando ao momento da compra do veículo. Dirige-se a Gondomar, ao concessionário da A..., para comprar o veículo. E, em instâncias do Colega, disse que nenhum dos funcionários dos comerciais que lhe atendeu lhe garantiu os consumos do veículo, correto?”

Recorrente: “Nem sequer falaram nisso”.

Advogada da 2.ª Ré: “Nem sequer falaram nisso, portanto nenhum deles lhe disse que este carro iria ter um consumo de 7 litros”.

Recorrente: “Exatamente, com litros aos 100 (km) ninguém me falou”.

Assim, fica claro que não se encontra demonstrado o facto que o Recorrente pretende ver como provado.

No mesmo sentido, não ficou provado o alegado pelo Recorrente na conclusão 20.º, relativo à divulgação dos consumos em todos os sites institucionais da marca, pelo que também nesta sede não se vislumbram fundamentos para que ocorra uma alteração da matéria de facto.

Ainda no contexto da alegada essencialidade do que lhe foi transmitido relativamente aos consumos, recorde-se que resulta dos autos que a verdadeira razão subjacente à opção do Recorrente por este modelo, foi o mesmo lhe ter sido recomendado pelo seu amigo BB, o que resulta do depoimento prestado pela referida testemunha.

De resto, tal versão resulta confirmada pelo próprio Recorrente nas declarações que prestou na audiência de julgamento realizada a 15.01.2024 que se transcreve infra (gravação da audiência, ficheiro “Diligencia_293-21.0T8MAI_2024-01-15_10-06-07”):

Minutos 00:53:55 a 00:54:52

Advogada da 2.ª Ré: “Aqui a minha dúvida é, em que momento, quando se dirige a um

concessionário da A... para adquirir um veículo, é que o senhor adquire esta convicção de que no máximo este carro vai consumir 7 litros?”

Recorrente: “Repare, a convicção é tida antes, evidentemente. Porque temos conversas, temos experiência, temos contactos…”.

Advogada da 2.ª Ré: “Então cronologicamente, só para ver se eu percebi. O senhor quer comprar um carro. Anda num carro de um amigo e esse amigo diz «este carro é bom, avança aí que vai ser um bom negócio» e o senhor vai à A... e compra o carro”.

Recorrente: “Exatamente”,

A título complementar, sempre se refira que, conforme resulta do depoimento da testemunha CC, na sessão de julgamento realizada a 15.01.2024, que a seguir se transcreve (gravação da audiência, ficheiro “Diligencia_293-21.0T8MAI_2024-01-15_12-01-37”), e em função da sua experiência enquanto comercial, os consumos das viaturas não são, regra geral, o factor determinante na escolha dos modelos.

Menciona-se, ainda, que a simples circunstância de uma testemunha ter algum tipo de relação com uma parte no processo (como é o caso de uma anterior entidade empregadora), não pode, só por si, constituir fundamento para se considerar o respectivo depoimento parcial, o que não se indefere da análise global dos depoimentos em causa prestados.

Por fim, alega o Recorrente de que sofreu transtornos devido à privação do veículo durante os anos de duração do presente processo judicial.

Afigura-se-nos, porém, que o não uso da viatura foi uma escolha inteiramente do Apelante uma vez que a mesma se encontra, conforme resulta das declarações por este prestadas, na sua garagem pessoal.

Ou seja, não existiam motivos para que o Recorrente não circulasse com a viatura, uma vez que não resultou de qualquer teste a existência de um defeito ou anomalia na mesma.

Destarte, atenta a prova produzida, rectius, não produzida pelo Recorrente quanto à matéria constante dos factos não provados 40 a 50 (alíneas a) a k)), em obediência ao disposto no artigo 342.º do Código Civil, não poderia a referida matéria constar do elenco dos factos provados.

Assim sendo e face ao exposto, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto.



4.3. Do mérito da decisão.

O Autor/Apelante clama pela revogação da sentença de que recorre nos pontos que assinalou.

Sustenta, desde logo, a referida pretensão na modificação da decisão sobre a matéria de facto que, pela via recursiva, reclama.

Mantendo-se, todavia, inalterada a decisão relativa à matéria de facto, em consequência da improcedência do recurso impugnativo da mesma, afigura-se-nos que, à luz da mesma, se deve manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Conforme bem refere o Tribunal a quo:

“(…)

Nos termos do tipo contratual de compra e venda em apreço, para além do fornecimento do bem contratado, resulta para quem solicita o mesmo - no caso dos autos o autor - a obrigação de pagar o preço no prazo convencionado entre as partes ou mediante interpelação a tanto dirigida.

Ora, dos autos resulta que o autor procedeu ao pagamento convencionado e que a ré A... entregou o veículo pretendido.

Porém, o autor alega que, apesar de ter sido cumprida a obrigação de entrega do veículo pela ré, o mesmo não tinha, afinal, as características convencionadas, designadamente quanto ao consumo médio de GPL.

Nessa medida, na presente acção, o autor pretende ver reconhecida a validade da resolução contratual por si operada ou a anulação dos contratos por erro sobre o objecto do negócio.

(…)

Para aferir da procedência do pedido formulado pelo autor a primeira questão a analisar reporta-se à existência ou não de incumprimento contratual por parte das rés.

Vejamos.

Segundo o artigo 913º n.º 1 do Cód. Civil, “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.

Por outro lado, estipula o n.º 2 do mesmo artigo que “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria” (critério objectivo da normalidade da função das coisas da mesma categoria).

Este artigo cria um regime especial para as quatro categorias de vícios nele destacadas: vício que desvalorize a coisa; vício que impeça a realização do fim a que é destinada; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; e falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que coisa se destina.

Aplica-se, pois, e apenas, aos defeitos essenciais, sendo que quaisquer outros vícios que não os ali previstos, serão irrelevantes.

Por outro lado, dispõe o artigo 914º do Cód. Civil que “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”.

Na verdade, o consagrado nos artigos 905º a 912º do Cód. Civil - para os quais remete o artigo 913º -, confere ao comprador de coisas defeituosas, os seguintes direitos: anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respectivos requisitos de relevância exigidos pelo artigo 251º e 254º; redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo o comprador teria igualmente adquirido a coisa, mas por um preço inferior (artigo 911º); indemnização do interesse contratual negativo, cumulável com a anulação do contrato e com a redução do preço; e reparação da coisa, ou a sua substituição (artigo 914º), independentemente de culpa do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, por convenção das partes ou por força dos usos (artigo 921º n.º 1).

Por outro lado, importa ter presente que ao litígio subjacente aos presentes autos são, ainda, aplicáveis as disposições constantes do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, o que nos remete para a aplicabilidade do regime legal de protecção ao consumidor.

Com efeito, a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor) no seu artigo 2º n.º 1 fornece a definição de consumidor.

Por outro lado, o regime do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva 1999/44/CE do parlamento Europeu e do Conselho, de 25/05/99, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.

Estes dois diplomas aplicam-se às relações de consumo, enunciando o primeiro as regras básicas e regulando o segundo certos aspectos da venda de bens de consumo.

As normas contidas, quer na Lei de Defesa do Consumidor, quer no DL n.º 67/2003, aplicáveis aos contratos de compra e venda numa relação de consumo, revelam-se normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de compra e venda, derrogando aquelas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação - o da relação de consumo.

Estes dois diplomas são referidos em conjunto porque a noção de consumidor é remetida do segundo para o primeiro e o segundo revogou normas do primeiro.

A relação de compra e venda de consumo é aquela que é estabelecida entre alguém que destina o bem comprado a um uso não profissional e outrem que exerce com carácter profissional uma determinada actividade económica, a qual abrange a venda do bem em causa, mediante remuneração (artigos 2º n.º 1 da Lei n.º 24/96 e 1º n.º 1 do DL n.º 67/2003).

No que ao caso concreto diz respeito, apurou-se que o negócio jurídico em apreço foi celebrado entre um mero particular – o autor – e um comerciante de veículos – a ré -, sendo que esta se dedica à actividade de venda de veículos.

Nessa medida, é manifesto que são aplicáveis ao caso concreto, além do regime regra previsto no Cód. Civil, as disposições legais supra mencionadas.

No que concerne ao caso concreto, o autor veio sustentar que o veículo por si adquirido padece de anomalias que implicam um consumo excessivo de GPL.

Mais sustenta que tal circunstancialismo implica uma desconformidade do veículo relativamente às características que deveria observar, sendo que aquando da aquisição incorreu num erro quanto ao objecto do negócio.

Porém, considerando a factualidade provada, constata-se que o autor não logrou demonstrar a factualidade em que alicerçou a sua pretensão.

Com efeito, incumbindo-lhe o respectivo ónus de prova, nos termos do artigo 342º do Cód. Civil, o autor não logrou provar que o veículo por si adquirido apresente qualquer anomalia de funcionamento ou desconformidade quanto às qualidades e ao desempenho que podia razoavelmente esperar.

Em suma, entendo que o autor não logrou demonstrar os pressupostos em que baseou a sua pretensão, sendo que o veículo não padece de qualquer deficiência que afecte o seu funcionamento, nem se verifica qualquer situação que desvalorize o mesmo.

Assim, conclui-se que não estão reunidos os requisitos para que a presente acção possa proceder, quer porque não se provou a existência de qualquer anomalia ou desconformidade do veículo, quer porque não se provou que o autor tenha agido em erro imputável às rés.

Nessa medida, não só não se verificam os pressupostos para julgar válida a resolução operada, como não estão presentes os requisitos legais para anular os negócios jurídicos questionados.

Improcede, pois, na totalidade a pretensão do autor.

Atenta a decisão supra mencionada, não se toma conhecimento do pedido reconvencional, o qual foi formulado apenas no pressuposto de procedência do pedido principal. (…).

As referidas considerações jurídicas afiguram-se-nos correctas à luz da factualidade provada pelo que não é merecedora de censura a sentença proferida pelo Tribunal recorrido.

Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.

*

Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………

5. Decisão

Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.

*

Custas a cargo do apelante.

*

Notifique.

Porto, 07 de Novembro de 2024
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
Isabel Peixoto Pereira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
______________
[1] Cf. Código de Processo Civil, Vol. III, pág. 151.
[2] Cf. Abrantes Geraldes In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág. 283.



Fonte: http://www.dgsi.pt