TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
Acórdão
CÍVEL
Processo

525/13.8TBSLV-C.S1.E1

Data do documento

16 de maio de 2019

Relator

Francisco Matos


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RELEVÂNCIA


Descritores

Insolvência culposa
Pressupostos


Sumário

I - A criação ou agravamento artificial de prejuízos ou de redução de lucros, pelos administradores do devedor, constitui fundamento inilidível da insolvência culposa.
II - Os negócios ruinosos celebrados pelo devedor, em tais situações, deverão ser caraterizados casuisticamente e não carecem (necessariamente) de beneficiar os administradores do devedor ou de pessoas com ele especialmente relacionadas.
(Sumário do Relator)

Proc. nº 525/13.8TBSLV-C.S1.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório
1. Por apenso à insolvência de (…), Lda., o Administrador da insolvência (A.I.) apresentou parecer propondo a qualificação da insolvência como culposa e indicou o sócio-gerente (…) para ser afetado pela qualificação.
Alegou, em síntese, que a insolvente celebrou vários contratos de locação financeira que visaram a locação de maquinaria (recebida como nova) que já lhe pertencia, por ela formalmente alienados a (…), Lda. e (…), Lda., esta última gerida por uma irmã do sócio-gerente, (…), as quais as vendiam às locadoras, ficando a Insolvente com os encargos resultantes dos contratos de locação e com equipamentos usados, avaliados como novos para efeitos dos contratos de locação, assim beneficiando aqueles sociedades (terceiros), com prejuízo dos seus credores e que a insolvente apresentou queixa-crime pelo furto de um veiculo automóvel, o qual alegadamente continha as pastas da contabilidade dos anos de 2003 a 2013, cujas caraterísticas, por falta de espaço disponível, não permitiam acomodar tais elementos da contabilidade da Insolvente.
O Ministério Público formulou parecer concordante com o requerido pelo A.I.
(…) deduziu oposição concluindo pela extemporaneidade dos pareceres do AI e do MP e, em qualquer caso, pela qualificação da insolvência como fortuita.

2. Foi proferido despacho que julgou improcedente a exceção da extemporaneidade dos pareceres, afirmou, em tudo o mais, a validade e regularidade da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 189º, n.ºs 1, 2 e 4, do CIRE, o tribunal qualifica como culposa a insolvência de (…), Lda., pessoa coletiva n.º (…), com sede no Parque Industrial do (…), Pavilhão (…), (…), e, em consequência:
a) Declara afetado pela qualificação (…);
b) Declara (…) inibido, pelo período de 3 (três) anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por (…);
d) Condena (…) a indemnizar os credores da sociedade “(…), Lda.”, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a efetuar em liquidação de sentença”.

3. O afetado pela qualificação (…) recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“01 - O Tribunal recorrido andou mal ao ter qualificado a insolvência de que este incidente é apenso como culposa porquanto os factos dados como provados não consentem que se tenham por preenchidos os requisitos previstos no CIRE (mormente o n.º 1 do artigo 186.º do CIRE e alínea b) no n.º 2 do mesmo artigo que a Sentença recorrida convocou).
02 - Divisam-se quatro requisitos cumulativos que, conquanto haja respaldo nos factos provados, determinam a qualificação da insolvência como culposa: 1) conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito; 2) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; 3) que essa conduta tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência; 4) e que essa mesma conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.
03 - Relativamente ao requisito cronológico (constante do n.º 1 do artigo 186º do CIRE) resulta do facto n.º 2 do probatório que a Insolvente apresentou o respetivo pedido em 2/05/2013 – pelo que para efeitos de qualificação da insolvência importam os factos jurídicos culposo que conduziram ou agravaram a situação de insolvência que hajam sido praticados entre 2/05/2010 e 2/05/2013.
04 - No caso dos autos, e por referência aos contratos de locação financeira que, supostamente, constituíram negócios ruinosos que aumentaram o passivo da Insolvente em benefício do Recorrente ou de pessoas com ele relacionados, encontra-se apenas provado o que se acha no ponto de facto 16, de onde se retira, singelamente, que os mesmos foram celebrados “em 2010”.
05 - Por outro lado, a Decisão recorrida, ainda que timidamente, parece apontar para uma conduta – não provada – de que tenha resultado uma ocultação ou disposição dos bens quando afirma não saber o que aconteceu aos equipamentos. Ora, se não se sabe o que sucedeu, igualmente não se sabe quando é que tais atos putativos atos terão sido praticados, tanto mais quanto resulta dos factos 13 a 15 que a suposta falta de coincidência do equipamento foi detetada na diligência ocorrida em 24 de Setembro de 2013 – pelo que não se pode concluir que tenham ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.
06 - É ao interessado na qualificação da insolvência e na afetação que cabe o ónus da prova dos respetivos requisitos, nomeadamente dos factos-índice previstos naquela disposição legal (art.º 342º, nº 1, do Código Civil).
07 - Observa-se pois um non liquet probatório relativamente à condição de punibilidade cronológica em presença, o que só pode significar que a Sentença a quo andou mal ao qualificar a insolvência como culposa, por incorreta aplicação do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE.
08 - Como assim é, afastada esta condição primeira e essencial para o preenchimento do “tipo” da qualificação da culposa, dever-se-á concluir, sem necessidade de ulteriores indagações sobre o preenchimento dos demais requisitos, pelo erro de subsunção jurídica levada a cabo pela Sentença recorrida e que ora confiadamente se espera seja corrigido.
SEM PRESCINDIR
09 - Os factos adquiridos para o processo não permitem preencher as hipóteses previstas no “facto índice” tipificado na alínea b) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, não se podendo extrair do probatório a conclusão de que os negócios em causa – nomeadamente a circunstância de as máquinas terem “sido recebidas como novas quando na realidade não eram, e ao aceitá-las a insolvente aumentou o seu passivo no valor dos contratos de locação financeira celebrados com as entidades bancárias, num total de mais de 22 milhões de euros” – tenham sido prejudiciais para a Insolvente, tão pouco que esses negócio tenha sido efetuado em interesse do ora Recorrente ou de pessoa com ele especialmente relacionada.
10 - A alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, comporta vários pressupostos (a celebração de negócios ruinosos que causem ou agravem artificialmente passivos ou prejuízos ou a redução de lucros e o benefício do gerente ou de pessoa com ele especialmente relacionada) que constituem cláusulas abertas, não densificados, que impõem que do circunstancialismo fáctico provado resulte que o negócio “ruinoso” seja a causa adequada da produção ou do agravamento da situação de insolvência.
11 - Todavia, não resulta minimamente provado que os ditos leasings e o financiamento contraído se subsumam a tal causa adequada, já que, como consta da Sentença – e bem assim, das doutas Decisões do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e do Tribunal Central Administrativo do Norte juntas aos autos – a celebração dos leasings teve como objetivo “o financiamento da insolvente”.
12 - Ora, para que a insolvente se financiasse com as suas próprias máquinas (vide facto 16 já citado) é lógico e evidente que as mesmas terão de ter saído da sua esfera jurídica para a da sociedade (…) – daí a Sentença, e bem, falar de “transferência” da propriedade.
13 - Tratou-se, como aliás também foi bem ponderado pelas aludidas Decisões Judiciais, de uma mera operação financeira, em que, pese embora na forma se trate de um simples leasing é em substância um leaseback, ocorrendo a intervenção do terceiro (que adquire o equipamento à insolvente e vende ao Banco, para que a este posteriormente a ceda à insolvente).
14 - Ora, nada vem provado sobre o título, tempo, modo e preço inerente a transferência do direito de propriedade que se dá da insolvente para a (…) assumindo mesmo a Sentença que “não se sabe porque preço” foi feito tal negócio.
15 - Ora, se os leasings serviram para a insolvente se financiar só se poderia concluir que esta engenharia financeira e bancária foi ruinosa – isto é, que o endividamento correspondente aos leasings foi causal à insolvência – se se provasse que a transferência da insolvente para a (…) foi efetuada em condições danosas para a insolvente. E tal não vem minimamente provado.
16 - Inexiste, pois, qualquer fundamento que permita a conclusão jurisdicional de que a conduta narrada no probatório tenha sido prejudicial para a devedora.
MAS MAIS
17 - Igualmente não se deu como provado que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas – com o que não se mostra preenchido o requisito (cumulativo) constante da parte final da convocada alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
18 - Poder-se-ia ter a tentação de encontrar esse beneficiário na (…). Porém, como já se disse, a intervenção da (…) no leasing pressupôs que esta adquirisse a propriedade dos equipamentos à insolvente (financiando-a) a fim de os vender às instituições bancárias (que por sua vez as locaram à insolvente) nada constando sobre o título, tempo, modo e preço inerente a essa transferência da propriedade.
19 - Em tese dir-se-ia que se se tivesse provado que as vendas da Insolvente para a … (e correspondente encaixe financeiro da insolvente) era reduzido em comparação com o valor dos leasings assumidos pela Insolvente teria existido um negócio prejudicial para a insolvente e um inerente benefício para a dita (…) – todavia “não se sabe porque preço” foram os equipamentos vendidos pela insolvente, e, não se sabendo, não se pode afirmar que esta (…) tenha sido beneficiada com o negócio e a insolvente prejudicada.
20 - E note-se que nenhum dos interessados requereu, p.e., que fosse a (…) notificada para vir demonstrar os valores dessas suas compras à insolvente, pelo que novamente estamos perante um non liquet probatório que terá de ser resolvido em desfavor dos interessados a quem cabia o respetivo ónus.
21 - De todo o modo, mesmo que, por hipótese, tal benefício tivesse ocorrido constata-se que o lastro factual respeitante à (…) se circunscreve ao apuramento de que a mesma foi gerida por uma irmã do Recorrente e que a mesma foi TOC quer dessa sociedade quer da insolvente – o que, por si só, não torna a dita sociedade comercial uma “pessoa especialmente relacionada como devedor” por não se subsumir a nenhuma das alíneas do citado artigo 49.º do CIRE.
22 - Pelo que, não se mostrando preenchido (também) este elemento constitutivo da factispecie prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, a qualificação da insolvência como culposa foi mal decidida pelo Tribunal recorrido.
23 - Em síntese, do probatório não constam elementos concretos permitam concluir pela celebração de negócios que tenham sido ruinosos para a devedora e que tenham sido celebrados em proveito dos seus sócios/gerentes ou de pessoas com eles especialmente relacionadas, nada se provando sobre os concretos negócios que foram efetuados, quais as pessoas que tiveram intervenção nesses negócios, quais os preços contratados em cada um desses negócios e quais os reais e exatos valores de mercado em causa.
24 - Assim, não se mostram preenchidas as normas jurídicas [i.e., nem o n.º 1 nem a al. b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE] com base nas quais o Tribunal a quo sentenciou a condenação de que se recorre, normas essas que foram violadas.
25 - Por fim, o Recorrente consigna, em cumprimento do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, e porque cumpre os requisites previstos nas diversas alíneas desse inciso legal, que pretende que o presente recurso suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente. Consequentemente, deverá ser revogada a Decisão recorrida e substituída por outra que não qualifique a insolvência como culposa, com o que V. Exas, farão a sã e costumada JUSTIÇA!”
Respondeu o Ministério Público defendendo a confirmação da sentença recorrida e prevenindo a possibilidade da sua procedência requereu, assim, a ampliação do âmbito do recurso:
A) Prevenindo a hipótese de procedência do argumento do recorrente de que não se mostra provado que os factos objetivos que determinaram a qualificação da insolvência como culposa tivessem ocorrido nos três anos que antecederam a apresentação à insolvência, e porque entende que a atuação do recorrente não se cinge ao ano de 2010, mas também a 2011 vem impugnar a redação conferida ao facto dado como provado em 16 da matéria de facto provada.
B) Com efeito, o Tribunal devia ter feito constar que as máquinas foram objeto de contratos de locação financeira em 2010 e 2011, em função dos documentos (contratos de locação financeira celebrados com o Banco …, o Banco …, a Caixa Central de Crédito …, o Banco … Português e o … Geral) que constam nos autos a fls. 587, 711, 802 a 807, 810 a 815, 846, 1134 a 1142.
C) Assim, e porque tais documentos já estão citados na fundamentação da sentença (página 6) e refletem eles próprios a data da sua celebração, a mesma peca por defeito, e por alguma imprecisão quando se reporta à data da celebração dos contratos de locação financeira, verificando-se que os contratos foram celebrados não apenas em 2010, mas também em 2011, o que altera a decisão relativa ao enquadramento temporal do comportamento que qualifica a insolvência.
D) Pelo exposto, requer-se que o ponto 16 dos factos provados passe a ter a seguinte redação: “As máquinas que se encontravam nas instalações da insolvente, já existiam na posse da insolvente pelo menos desde o ano de 2008, tinham grande desgaste e uso e foram objeto de contratos de locação financeira em 2010 e 2011, tendo sido recebidas como novas quando na realidade não eram, e ao aceitá-las a insolvente aumentou o seu passivo no valor dos contratos de locação financeira celebrados com as entidades bancárias, num total de mais de 22 milhões de euros”.
E) Assim, caso o Tribunal ad quem venha a reconhecer razão ao fundamento alegado pelo recorrente, relativo à condição de punibilidade estabelecida na última parte do art.º 186º, n.º 1, do CIRE, requer-se que seja apreciada a questão de facto agora suscitada”.
Respondeu a credora Caixa Central – Caixa Central de Crédito (…), CRL, por forma a defender a confirmação da sentença recorrida.
Considerando a decisão singular proferida no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1336 a 1338) e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões da motivação do recurso, enquanto constituam corolário lógico-jurídico da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo de alguma das questões suscitadas vir a ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
As conclusões do recurso colocam as seguintes questões: (i) não se demonstra que a situação de insolvência foi criada ou agravada, pelo gerente da devedora, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, (ii) não se demonstra a criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos da devedora, (iii) não se demonstra que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, requisito indispensável (cumulativo) à criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos.

III. Fundamentação
1. Factos
A sentença recorrida julgou assim os factos:
Factos provados:
1. (…), Lda., pessoa colectiva n.º (…), com sede no Parque Industrial do (…), Pavilhão (…), (…), foi declarada insolvente por sentença proferida em 14.05.2013, transitada em julgado.
2. A declaração de insolvência foi requerida pela (…), Lda. em 02.05.2013.
3. (…) foi sócio e gerente da Insolvente desde a sua constituição tendo cessado as funções de gerente com a declaração da insolvência, mostrando-se registada pela AP. …/19880708 a sua nomeação como gerente da (…), Lda..
4. Mostra-se registada pela AP. …/19880708 a nomeação de (…) e de (…) como gerentes da (…), Lda..
5. Mostra-se registada pela AP. …/20091125 a cessação de funções de como gerente da Insolvente (…), Lda. de (…).
6. Mostra-se registada pela AP. …/20100322 a nomeação de (…) como único gerente da (…), Lda..
7. Na data da sua constituição a (…), Lda. tinha por objeto: revestimento, supercalandragem, contracolagem e outras operações de transformação simples do papel ou cartão, como rebobinagem, quando efetuadas fora da máquina de formação de folha, gofragem de papel e cartão, fabricação de cartão canelado em prancha, comercialização de produtos alimentares e seus derivados.
8. Em 2012 foi alterado o objeto da Insolvente pela AP. …/20120303 que passou a ser “Produção, reparação e comercialização de máquinas industriais e acessórios; compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim.”
9. A (…), Unipessoal, Lda. tem por objeto a produção, reparação e comercialização de máquinas industriais e acessórios.
10. Mostra-se registada pela AP. …/20101223 a nomeação de (…) como gerente da (…), Unipessoal, Lda..
11. Mostra-se registada pela AP. …/20110113 a cessação de funções de gerente de (…) da (…), Unipessoal, Lda..
12. (…) atualmente é titular do nome “(…)”.
13. Na diligência de deslocação às instalações da insolvente em (…), (…), realizada a 24 de Setembro de 2013, verificou-se que os equipamentos de produção existentes nas instalações, sofreram alterações das chapas de identificação e não correspondiam com os descritos nas faturas objeto dos acordos denominados “contrato de locação financeira mobiliária”, celebrado com a Caixa Central – Caixa Central de Crédito (…), CRL, com o nº (…) e com o Banco (…) com o nº (…) e nº (…).
14. Na diligência referida em 13 o Banco (…) Português, SA, Banco (…), SA, Banco (…), SA, (…) Bank PLC, Caixa Central de Crédito (…), CRL e Caixa Económica (…), fizeram-se representar por elementos e técnicos, por forma a aferir se os equipamentos que aí se encontravam correspondiam aos identificados nos respetivos acordos denominados “contratos de locação financeira” constantes dos autos.
15. Os técnicos da totalidade dos credores presentes consideraram que as máquinas aí presentes não correspondiam aos bens descritos nas faturas dos acordos denominados “contratos de locação financeira”.
16. As máquinas que se encontravam nas instalações da insolvente, já existiam na posse da insolvente pelo menos desde o ano de 2008, tinham grande desgaste e uso e foram objetos de contratos de locação financeira em 2010, tendo sido recebidas como novas quando na realidade não eram, e ao aceitá-las a insolvente aumentou o seu passivo no valor dos contratos de locação financeira celebrados com as entidades bancárias, num total de mais de 22 milhões de euros.
17. Para além do TOC das firmas referidas ser comum, um dos gerentes da (…), Lda. é TOC da insolvente e irmã do sócio gerente da insolvente, (…), (…) e que atualmente tem por nome (…).
18. O Banco (…) foi condenado ao pagamento à massa da quantia de 1.500.000,00 mais juros, tendo a massa recebido de indemnização do (…) o montante de cerca de 2.220.000,00 euros.
Factos Não Provados:
1) Que face à extensão dos equipamentos que integram o parque de máquinas, a insolvente teve necessidade de proceder a uma organização interna, e como tal, atribuiu uma chapa de identificação a cada equipamento.
2) Que se tratam de diversas máquinas encadeadas, e que permitem desde o tratamento de papel em bobinas até ao embalamento produzir verticalmente certo tipo de produtos.
3) Que após a atribuição de um número de identificação aos equipamentos, a insolvente fez refletir tal indicação nas faturas que acompanharam a celebração do contrato de locação financeira.
4) Que cada equipamento está, por regra, descrito nas faturas não pela marca da máquina, mas pela chapa de identificação, de modo a permitir a cada entidade financeira a verificação presencial dos equipamentos que integram o objeto do contrato de locação financeira.
5) Que a cada contrato corresponde um equipamento, cada equipamento tem uma chapa de identificação, foi faturado e está devidamente referenciado no contrato de locação financeira.
6) Que os equipamentos, salvo algumas exceções, não eram locados como novos, mas sim como usados, o que as instituições financeiras não podiam ignorar.
7) Que já em anos anteriores a insolvente tinha realizado contratos de locação financeira com diversas instituições, que bem sabiam da sua natureza.
8) Que a insolvente sempre conservou todo o património imobiliário que tem um valor significativo.

2. Direito.
2.1. Se não se demonstra que a situação de insolvência foi criada ou agravada, pelo gerente da devedora, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Considera o Apelante que a insolvência não pode haver-se por culposa, porquanto não se demonstra nos autos que o agravamento artificial do passivo, suposto pela decisão recorrida, haja ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
A criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor, relevante para efeitos da qualificação da insolvência como culposa, deve ocorrer nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186º, nº 1, do CIRE).
De acordo com os factos julgados provados pela decisão recorrida a Devedora deu início ao processo de insolvência em 2/5/2013 (ponto 2 dos factos provados) e o agravamento artificial do passivo terá ocorrido em 2010, ano da celebração dos contratos de locação financeira, mediante os quais assumiu o pagamento de rendas, em valor superior a 22 milhões de euros, para locar máquinas, gastas e usadas, que já lhe pertenciam (ponto 16 dos factos provados).
Enquadramento factual que não permite, é certo, afastar a possibilidade de os contratos haverem sido celebrados antes de 2/5/2010 e, assim, de situar os negócios tido por ruinosos em período temporal irrelevante para efeitos da qualificação da insolvência como culposa.
Vistos, porém, os contratos que servem de motivação à decisão recorrida e, por esta, aliás, anotados, cedo se certifica que a razão do Apelante é de forma e não de substância e isto porque tais contratos se reportam, todos eles, a datas posteriores a 2/5/2010 e, por tal, mostram-se inseridos no período temporal em que a criação ou agravamento da situação de insolvência releva para efeitos da qualificação desta como culposa.
O ponto 16 dos factos provados diz menos que a motivação que o justifica.
Ainda assim, o que diz é insuficiente para situar os negócios tidos por ruinosos nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e, como tal, importaria dar razão ao Apelante.
Prevenindo este resultado o Ministério Público veio impugnar a decisão de facto vertida no considerado ponto 16 por forma a que nele se afirme que os contratos de locação financeira foram celebrados nos anos de 2010 e 2011, fundando-se precisamente na prova documental em que assentou a decisão recorrida.
Do exposto já resulta que tem razão, importando tão só acrescentar que de acordo com os documentos que motivaram a decisão recorrida, os contratos de locação financeira, a que se reporta o ponto 16 supra, foram celebrados nas seguintes datas: 29/9/2010 (fls. 618 a 650), 14/11/2011 (fls. 705 a 708), 2/2/2011 (fls. 802 a 807), 8/11/2010 (fls. 846 a 852), 14/9/2010 (fls. 857 a 861), 8/11/2010 (fls. 890 vº a 893 vº), 25/2/2011 (fls. 1143 a 1150) e 9/6/2011 (fls. 1151 a 1159).
E, assim, altera-se o ponto 16 dos factos provados para nele passar a constar o seguinte: “As máquinas que se encontravam nas instalações da insolvente, já existiam na posse da insolvente pelo menos desde o ano de 2008, tinham grande desgaste e uso e foram objetos de contratos de locação financeira entre em 14/9/2010 e 14/11/2011, tendo sido recebidas como novas quando na realidade não eram, e ao aceitá-las a insolvente aumentou o seu passivo no valor dos contratos de locação financeira celebrados com as entidades bancárias, num total de mais de 22 milhões de euros”.
Celebrados os contratos de locação nas referidas datas evidenciam-se que se situam temporalmente nos três anos anteriores a 2/5/2013, data do início do processo de insolvência, importando agora verificar se comportam negócios ruinosos para a devedora como, sem aprovação do Apelante, supõe a decisão recorrida.

2.2. Se não se demonstra a criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos da devedora.
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham designadamente criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas (artº 186º, nº 2, al. b), do CIRE).
Verificando-se que a atuação (por ação ou omissão) dos administradores do devedor preenche a previsão em referência, assim como as demais enumeradas nas restantes alíneas do nº 2, a lei considera criada, ou agravada, a situação de insolvência e funciona a presunção absoluta ou juris et de jure e, assim, inilidível que a insolvência é culposa.
A decisão recorrida percorreu este caminho e verificando que o gerente da devedora celebrou com várias instituições financeiras contratos de locação, em valor superior a 22 milhões de euros, que tiveram por objeto máquinas usadas de que já era possuidora, considerou artificialmente agravado o passivo da devedora na referida quantia e, assim, culposa a insolvência.
O Apelante diverge e argumenta que a celebração dos leasings teve como objeto o financiamento da insolvente e que a qualificação dos negócios como ruinosos não dispensa que se façam contas, ou seja, que se verifique o valor pelo qual vendeu os bens (que já lhe pertenciam) às empresas que, por sua vez, os venderam às locadoras, única via de apurar eventuais prejuízos, contas que os autos não permitem fazer uma vez que se desconhece o referido valor de venda dos bens e, acrescentamos nós, dificilmente se poderão obter os elementos necessários a tais contas na contabilidade da Devedora, uma vez que lhe terá sido furtado o veiculo automóvel que continha as pastas da contabilidade dos anos de 2003 a 2013, segundo a queixa-crime que apresentou.
Prova-se que a devedora, por ação do Apelado, assumiu o pagamento de rendas, em valor superior a 22 milhões de euros, para locar máquinas, gastas e usadas, que já lhe pertenciam (ponto 16 dos factos provados) e este facto basta, a nosso ver, para se afirmar com segurança que o Apelado agravou o passivo da devedora, precisamente porque aumentou o passivo, naquela medida, sem qualquer contrapartida (aumento) do ativo da devedora ou melhoria nos meios de produção que se mantiveram inalterados (ficou com as máquinas, gastas e usadas, que já eram suas), enfim, os leasings foram objetiva e manifestamente ruinosos para a devedora de que era gerente o Apelante.
Argumenta o Apelado que os negócios se situam no domínio da engenharia financeira e que comportam processos de financiamento da devedora; será como diz, mas os factos provados (e é a eles que cumpre aplicar o direito) não acompanham o seu argumento, pois inexiste neles qualquer menção ou indício de tal (insondável) financiamento; nesta parte, o recurso assenta em factos que não se provam, causa da sua improcedência.
Improcede o recurso quanto a esta questão.

2.3. Se não se demonstra que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, requisito indispensável (cumulativo) à criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos.
Considera o Apelante que a insolvência não é culposa porquanto não se demonstra que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, requisito indispensável (cumulativo) à criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos.
Argumento que assenta num pressuposto de direito, (i) exigir a criação ou agravamento artificial do passivo relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, necessariamente, a obtenção de vantagens para o administrador do devedor, ou para pessoas com ele especialmente relacionadas e num pressuposto de facto, (ii) não encerram os autos tais vantagens.
Segundo a previsão da alínea b) do nº 2, do artº 186º, do CIRE, já antes referida, a insolvência considera-se sempre culposa quando os administradores do devedor tiverem “criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas”.
O fundamento inilidível da insolvência culposa em vista nesta previsão é a criação ou agravamento artificial de passivos ou de redução de lucros da devedora contemplando a segunda parte da previsão exemplos de atos de empobrecimento do devedor suscetíveis de preencher o conceito indeterminado – criação ou agravamento artificial – antes prefigurado, como claramente resulta da expressão nomeadamente.
A criação ou agravamento artificial de passivos ou de redução de lucros da devedora, relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa carece de apreciação casuística e não exige necessariamente – no dizer do Apelante cumulativamente – o benefício dos administradores da devedora ou de pessoas com eles especialmente relacionados; injustificadas vantagens que exemplificam o artifício mas não o esgotam.
Assim, e ainda que não se demonstre nos autos que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, como sustenta o Apelante e se admite por mera necessidade de raciocínio, tal não obsta à criação ou agravamento artificial do passivo da devedora o que, para efeitos da questão em apreciação, basta à qualificação da insolvência como culposa.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas
Vencido no recurso, o Apelante suportará as custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, em:
a) julgar procedente a impugnação da decisão de facto nos termos supra anotados (ponto 2.1. da fundamentação da sentença).
b) julgar improcedente o recurso e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Évora, 16/5/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário



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