J.., melhor identificado nos autos, demanda nesta ação declarativa com processo ordinário, P.., J.. e P.., Lda, reclamando dos mesmos uma indemnização no valor de 62839,00 € por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência de um “foguete” que o atingiu num evento de caridade.
Alicerça o pedido formulado contra a 3ª ré no facto de a mesma ter vendido o fogo, sabendo necessariamente que ia ser queimado por inexperientes.
A conduta ilícita e culposa da 3ª Ré, consubstanciada na venda de material pirotécnico, actividade por natureza perigosa que faz sobre ela incidir presunção de culpa (artigo 493º, nº2 CC), apresenta um risco elevado e destina-se, além do mais, pela classificação do produto, a ser vendido exclusivamente a profissionais com conhecimentos especializados, tecnicamente habilitados e credenciados, o que não foi o caso.
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Contestando, veio a 3ª Ré, P.., Lda, alegar, além do mais, que havia transferido todos os riscos que pudessem ocorrer durante e por causa do exercício da sua actividade e exploração da mesma, para a Companhia de Seguros.., S.A., pelo que tem aquela companhia de Seguros todo o interesse em pleitear ao lado da aqui Ré, e interesse assim em intervir nos autos.
Requer, assim, que seja admitida a sua intervenção.
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Sobre o incidente requerido foi proferido o seguinte despacho:
“Incidente de Intervenção Provocada de "..Companhia de Seguros, S.A., requerido pela 3ª Ré na sua contestação (fls. 37 a 39):
A 3ª. Ré veio requerer a intervenção (a título principal, como se depreende dos normativos legais invocados) da seguradora "..Companhia de Seguros, S.A.", alegando para o efeito que celebrou com esta um contrato de seguro mediante o qual transferiu para a mesma a responsabilidade decorrente do exercício da sua actividade e exploração.
Notificado, o Autor não deduziu oposição. Cumpre decidir.
Do alegado pela 3ª. Ré resulta que terá celebrado com a ora chamada um contrato de seguro de responsabilidade civil que garante a obrigação de indemnizar decorrente do exercício da sua actividade e exploração da mesma.
Estamos, pois, perante um contrato de seguro de responsabilidade civil voluntário e não obrigatório, ao qual se aplicam, nomeadamente, as normas estabelecidas nos arts. 137° e segs. do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (que aprova o regime jurídico do contrato de seguro).
De harmonia com o disposto no art. 138º nº 1 deste diploma legal, "O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado".
Significa isto que nos contratos de seguro facultativo as seguradoras apenas assumem (garantem) perante o tomador do seguro a eventual responsabilidade civil por danos causados a terceiros, não se constituindo, no entanto, como garantes directos da responsabilidade do segurado perante o lesado.
A relação jurídica em causa nos autos, tal como foi delimitada pelo autor na sua petição inicial, articula-se assim entre este, enquanto lesado e a tomadora do seguro, enquanto lesante.
Como, aliás, resulta do preâmbulo do citado Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, "no seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador."
E, de facto, o legislador circunscreveu, no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil facultativa, a acção directa do lesado face à seguradora do lesante às circunstâncias previstas no art. 140º nºs 2 e 3, do referido diploma, ou seja:
- quando o contrato de seguro preveja o direito do lesado a demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto; e
- quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre lesado e segurador.
No caso em apreço, nenhuma destas circunstâncias concretas foi alegada pelas partes.
Por outro lado, também não nos encontrámos no âmbito do seguro de responsabilidade civil obrigatória, pelo que também não é aplicável o disposto no art. 146º nº 1, do D.L. 72/2008.
Nesta conformidade, a referida Seguradora não se apresenta como condevedora, nem como principal devedora, não se justificando, por via disso, a sua intervenção na presente acção a título principal, mas sim a título acessório.
Na verdade, face ao alegado contrato de seguro, a 3a. Ré terá um eventual direito de regresso contra aquela, para ser ressarcido do prejuízo decorrente da perda da demanda.
Quer isto dizer que a intervenção da chamada se restringe ao auxílio da defesa quanto à responsabilidade pelo pagamento peticionado e também para garantir a vinculação da mesma à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 323º nº 4) (…).
(…) Pelo exposto, decide-se:
- admitir a intervenção acessória na causa de ".. Companhia de Seguros, S.A.", como auxiliar da defesa, nos termos do disposto nos arts. 321º e 322°, ambos do c.P.C.; e
- indeferir a intervenção desta entidade nos presentes autos a título principal…”.
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Não se conformando com a decisão proferida veio o A. dela interpor recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
A - Através do contrato de seguro, a seguradora obriga-se a suportar o risco. Ou seja, como contrapartida do recebimento do prémio, a seguradora passa a estar disponível para fazer face às consequências da eventual realização do sinistro.
B - Desta forma, pode afirmar-se que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar e o segurado na posição de quem tem que demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão e valorização.
C - Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário.
D - Acresce que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497º do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).
E - No caso em apreço, verifica-se que os factos articulados para justificar o chamamento da seguradora se inserem precisamente neste quadro normativo, pelo que não subsistem quaisquer dúvidas sobre a sua admissibilidade.
F – Na verdade, a chamada seguradora podia ter sido demanda pelo A conjuntamente com a Ré P.., sendo certo que esta transferiu para a chamada a obrigação de indemnizar terceiros, até determinado montante, pelos danos invocados na petição.
G - É pois inquestionável o direito da Ré P.., segurada, por força do litisconsórcio voluntário, a fazer intervir a título principal a sua seguradora, a qual poderá ser, como acima se viu, condenada a responder perante o lesado até ao limite do capital seguro caso seja demonstrada a responsabilidade da sua segurada e tem, portanto, manifesto interesse em contradizer o alegado nos autos.
H - Pelo que o incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da actividade de comércio de produtos pirótecnicos.
I - Decidindo diversa e contrariamente, não se conforma o douto despacho recorrido com o disposto nos art.º 30º, 32º e 316º CPC.
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se o incidente admitido nos autos é o da Intervenção Principal ou Acessória da Seguradora.
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Os factos a considerar para a decisão da questão suscitada são os constantes do relatório da decisão, acima mencionados.
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É de referir, antes de mais, que tendo o incidente em discussão nos autos sido suscitado na contestação da ré, em 9.2.2013, são ainda aplicáveis ao caso as normas do CPC, na redação anterior à então vigente, por força do disposto nos nº 2 e 3 do art 5º da Lei nº 41/2013, de 26/6.
Assim sendo, e fazendo uma breve introdução à questão, como é sabido, no nosso processo civil vigora o princípio da estabilidade da instância, segundo o qual depois de proposta a acção (pela qual se fixa o início da instância - cfr. artº 267.º do C.P.C), e uma vez citado o réu, deve, em principio, a instância manter-se imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir (objecto do processo) - cfr. art.º 268.º do C.P.C.
Tal princípio sofre, no entanto, algumas excepções, no que respeita, quer aos sujeitos, quer ao objecto do processo.
No que se refere aos sujeitos do processo (situação que apenas ao caso interessa), nelas destacam-se os incidentes de intervenção de terceiros - cfr. art.º 270.º al. a) do C.P.C.
Os incidentes de intervenção processual constituem, pois, um instrumento legal pelo qual se admite a modificação subjectiva da instância. Dentro do leque de tais incidentes encontram-se a intervenção principal e a intervenção acessória, regulados, respetivamente, nos artºs 320.º e ss. e 330º e ss. do C.P.C.
Segundo o n.º 1 do art.º 325º do C.P.C, relativo à intervenção principal provocada (que é o caso ora em discussão), “qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
Por este meio processual, tanto o autor como o réu podem chamar a intervir na causa alguém que lá não está, mas que tem um interesse igual ao do autor ou ao do réu, nos termos dos art.ºs 27.º e 28.º do C.P.C, (intervenção em litisconsórcio), ou que pudesse demandar aquele réu por um novo pedido, coligando-se com o autor, (intervenção em coligação), cfr. art.ºs 325.º n.º 1 e 320.º do C.P.C. Pode, ainda, o autor (e apenas o autor), chamar a intervir na causa, como réu, alguém contra quem pretenda dirigir o pedido, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida que está em juízo (intervenção em litisconsórcio eventual ou subsidiário), cfr. art.º 325.º n.º2 do C.P.C.
Ou seja, a intervenção de terceiros é um meio processual que deve ser articulado com as situações de pluralidade de partes, reguladas nos art.ºs 26.º a 31.º-B do C.P.C.
Como refere Salvador da Costa (Os Incidentes da Instância, Almedina, 1999, página 100 e ss.) “na intervenção principal, em que ocorre igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte principal a que se associa, o terceiro, que poderia accionar, inicialmente, em termos de litisconsórcio ou de coligação, associa-se ou é chamado a associar-se a uma das partes primitivas, assumindo o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica da sua titularidade substancialmente conexa com a relação material controvertida delineada perante as partes primitivas”.
Nestas situações de pluralidade de partes há casos de associação derivada da existência de uma única relação material, como são os de litisconsórcio necessário ou voluntário (art.ºs 27.º e 28.º do C.P.C), e os de pluralidade de relações, de que é paradigma a coligação de autores ou de réus (artº 30.º do C.P.C).
No litisconsórcio, quer necessário, quer voluntário, a relação material controvertida respeita a diversas pessoas, ou seja, existe uma pluralidade de partes e uma unidade de relação jurídica ou obrigação interessando a duas ou mais pessoas. Ou, como ensina o Prof. Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil, Anotado”, vol. 3.º, pág. 514), “tal situação litisconsorcial pressupõe que a relação jurídica substancial respeita a uma pluralidade de sujeitos, quer no aspecto activo, quer no aspecto passivo, ou nos dois”.
Ora, tanto no caso de litisconsórcio necessário, como voluntário, exige a lei que o interveniente tenha um interesse igual ao da parte com a qual pretende litisconsorciar-se. É o que acontece no caso das relações paralelas e das relações concorrentes, que englobam nomeadamente, as obrigações conjuntas, solidárias e indivisíveis. (Lebre Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 563).
Pode-se dizer, em termos gerais, que a intervenção principal é caracterizada pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte principal a que se associa.
O terceiro ou interveniente que se associa ou é chamado a associar-se a uma das partes primitivas assume o estatuto de parte principal (e daí a designação genérica de intervenção principal), operando-se no processo uma cumulação da apreciação da relação material controvertida delineada pelas partes primitivas, com a apreciação da relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a primeira, de molde a poder afirmar-se que tal conexão era susceptível de ter desencadeado “ab initio”, no processo, um litisconsórcio ou uma coligação (cfr. Lopes do Rego, Comentário ao Código do Processo Civil, pág. 242).
Ou seja, como tal intervenção não ocorreu logo desde o início, a intervenção principal visa, perante uma acção pendente, proporcionar a terceiros (intervenientes) o litisconsórcio ou a coligação com alguma das partes da causa.
Em conclusão, diremos que a intervenção principal se destina a permitir a participação, numa acção já pendente, de um terceiro, que é titular (activo ou passivo) de uma situação subjectiva própria, mas paralela à alegada pelo autor ou pelo réu (cfr. art.º 321.º do C.P.Civil) (cfr. Ac da RP de 3.5.2011, em www.dgsi.pt).
Por outro lado, a intervenção provocada acessória está prevista no art. 330º do CPC, que estipula que “O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar da defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal (nº1). A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.”
Resulta do confronto de ambos os institutos que o legislador (com a reforma do CPC, introduzida pelo DL n.º 329-A/95), pretendeu demarcar bem o âmbito de previsão de cada incidente, evitando situações de sobreposição; por isso, delimitou o âmbito da intervenção acessória, impedindo que o terceiro que tenha legitimidade para intervir como parte principal intervenha como parte acessória.
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Aferir se, no caso concreto, o chamado a intervir (a título principal) é titular de uma situação paralela à do A. ou do R., em termos de poder demandar ou ser demandado ab initio, é questão que convoca a análise da relação material controvertida, tal como ela nos é trazida aos autos pelo A., titular da ação.
Isto porque a legitimidade processual, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e pela causa de pedir, tal como são apresentados pelo autor, independentemente da prova dos factos que integram a última; logo, o incidente de intervenção principal provocada supõe uma contitularidade da relação material controvertida, com participação do chamado à intervenção.
Assim, a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu (como é o caso que ora nos ocupa) pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do acionamento operado pelo autor, não podendo intervir na ação quem lhe seja alheio.
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Reportando-nos agora ao caso dos autos vemos que o A demandou a 3ª ré como uma das responsáveis pela indemnização solicitada, imputando-lhe a responsabilidade pelo acidente de que foi vítima.
A questão que se coloca é então a de saber se o incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, do lado passivo, a seguradora, para quem a 3ª Ré transferiu a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da actividade de comércio de produtos pirótecnicos.
Mais concretamente, coloca-se a questão de saber se o A. (lesado) poderia ter demandado diretamente, “ab initio”, a seguradora, isoladamente ou conjuntamente com a ré, para delas obter uma condenação solidária.
Esta questão não tem tido um tratamento uniforme na jurisprudência (como nos dão conta, entre outros, os acórdãos da RP, de 14.6.2010, de 15.11.2012, de 31.1.2013 e de 21.5.2013 e desta RG de 6.1.2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt), sendo a mesma convocada quando se discute qual o tipo de incidente susceptível de fazer intervir na acção a seguradora, nas situações em que estamos perante um seguro de responsabilidade civil facultativo (como é o caso dos autos).
Reconhecendo embora o mérito que é conferido à jurisprudência consultada (nomeadamente aos acórdãos da RP de 14.6.2010, de 15.11.2012 e de 21.5.2013, e desta Relação, de 6.1.2011), entendemos que, no caso, o incidente adequado para chamar à acção a seguradora era o da intervenção acessória, como se decidiu no despacho recorrido.
Efetivamente, do alegado pela Ré resulta que a mesma terá celebrado com a chamada um contrato de seguro de responsabilidade civil, que garante a sua obrigação de indemnizar, decorrente do exercício da sua actividade e exploração da mesma.
Estamos perante um contrato de seguro de responsabilidade civil voluntário, ao qual se aplicam, nomeadamente, as normas estabelecidas nos arts. 137° e ss. do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro).
Ora, nos termos do art. 138º nº 1 daquele diploma legal, "O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado".
Significa isto que nos contratos de seguro facultativo as seguradoras apenas assumem (garantem) perante o tomador do seguro a eventual responsabilidade civil por danos causados a terceiros, não se constituindo, no entanto, como garantes directos da responsabilidade do segurado perante o lesado.
A relação jurídica em causa nos autos, tal como foi delimitada pelo autor na petição inicial, articula-se, assim, entre este, enquanto lesado, e a tomadora do seguro, enquanto lesante. Diferente (embora conexa com ela) será a relação material estabelecida entre o lesante e a seguradora, relação que se constituiu com a celebração do contrato de seguro.
Ou seja, a relação jurídica fundamental – a relação material controvertida – coloca, de um lado, o sujeito lesado e, do outro, o sujeito lesante. A seguradora só indirectamente surge com ela conexionada, por ter assumido, mediante o contrato de seguro, a eventual responsabilidade deste último, garantindo-o a ele e ao seu património, mas não se constituindo como garante directo perante aquele terceiro lesado.
Como refere Antunes Varela (Das Obrigações em Geral I, 4ª edição, 1982, página 332, nota 1) “…o segurado não quer, em regra, atribuir desde logo um direito ao credor da indemnização eventual contra a companhia seguradora, mas reservar apenas para si a faculdade de se desonerar da responsabilidade em que venha a incorrer. Diferente, nesse aspecto, é a fisionomia do seguro obrigatório.”
Claro que há interesse prático da seguradora chamada em que a ré não seja condenada. Todavia, quanto a esta, tal decorrerá da não verificação e reconhecimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar que fundamentaram a sua demanda. Quanto àquela, a não responsabilização será consequência indirecta ou reflexa da não ocorrência do risco que, em face desta, se obrigou a cobrir e de cujas consequências se obrigou a compensá-la. Ali, trata-se da relação directa lesado-lesante; aqui, da relação (interna) seguradora-segurada.
Assim sendo, partindo do princípio de que nos termos do artº 321º, o interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do réu, no caso, a seguradora nenhum direito próprio (ainda que de defesa) tem na relação material litigada perante o A. Esse direito próprio advém-lhe, sim, da qualidade de seguradora e funda-se no contrato celebrado com a segurada Ré. Não deriva da qualidade de lesante nem se funda na responsabilidade pelo evento danoso enquanto sujeito dele ou seu substituto e que, nos mesmos termos daquela (paralelos), possa contestar (artº 323º, nº1, e 327º, nº 3 do CPC e Ac RP de 31.1.2013, acima citado).
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Por outro lado – argumento que nos parece decisivo –, face à atual legislação sobre o contrato de seguro, não nos restam dúvidas sobre a posição defendida, claramente assumida pelo legislador, no artº 140º do DL nº 72/2008, de 16.4.
O contrato de seguro encontrava-se regulado – até à data da entrada em vigor do citado DL nº 72/2008 -, nos artºs 425.° a 431º do Código Comercial, sendo certo que daquelas normas (ou doutras, relacionadas com o contrato de seguro) nada resultava que permitisse a demanda directa pelo lesado da empresa seguradora e a correspondente responsabilização deste perante aquela.
Invocava-se, em face disso, o regime do artºs 443º e ss. do CC, para, a partir da qualificação do contrato de seguro como um típico contrato a favor de terceiro, sustentar o direito deste (como beneficiário) à prestação e, portanto, a possibilidade de a exigir directamente do segurador (artº 444º, nº 1 do CC).
Aliás, o contrato de seguro foi então (como ainda hoje) assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (cfr., na jurisprudência, entre outros, Acs. da RL de 07.11.2006 e da RP de 06.07.2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.; na doutrina, cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs.; José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 258 e 259), prevendo-se no artº 444º nº1 do CC que “o terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito á prestação, independentemente de aceitação”.
Por isso, na ausência de lei expressa sobre a matéria, era seguida a orientação de que o beneficiário da prestação podia demandar diretamente a seguradora.
Com a entrada em vigor do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou a actual Lei do Seguro, o legislador tomou posição clara sobre a matéria, não deixando, quanto a nós, margem para dúvidas, sobre a impossibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora, no caso dos seguros voluntários, a não ser nos casos (excecionais) previstos nos nºs 2 e 3 do artº 140º daquele DL.
De facto, o legislador circunscreveu, no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil facultativa, a acção directa do lesado face à seguradora do lesante, às circunstâncias previstas no artº 140º nºs 2 e 3 do referido diploma, ou seja, quando o contrato de seguro preveja o direito do lesado a demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto; e quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre lesado e segurador.
Fora dessas situações (fazendo apelo ao argumento “a contrario sensu”), não é consentida a demanda direta da seguradora.
Ora, como bem se referiu no despacho recorrido, não tendo sido alegada nenhuma daquelas circunstâncias no caso concreto, tal demanda direta estaria vedada ao A.
É certo que num ou noutro caso, “O segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes” (nº 1), mas tem de entender-se aqui a intervenção da seguradora como assistente e não como parte principal.
Assim, e no que toca ao seguro de responsabilidade civil por danos, em que “o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” (artº 137º, do citado Decreto-Lei) e mediante o qual se “garante a obrigação de indemnizar”, apenas no caso de seguro obrigatório o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador (artº 146º, nº1), caso em que a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado.
A posição do legislador foi, aliás, assumida, de forma consciente, como resulta do preâmbulo do citado Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, donde consta que "no seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador."
Ou seja, apesar de a solução da demanda directa estar há muito consagrada no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, e das dúvidas suscitadas no âmbito dos seguros de responsabilidade civil em geral, nem assim o legislador quis seguir aquela orientação.
Como nos dá conta Abrantes Geraldes (“O NOVO REGIME DO CONTRATO DE SEGURO ANTIGAS E NOVAS QUESTÕES” em www.dgsi.pt), no ponto 7. Acção directa contra o segurado: “Outra norma com manifesta implicação na actividade judiciária é a do art. 140º do RJCS relativo à acção directa do lesado contra a seguradora.
A acção directa contra a seguradora encontra-se expressamente prevista para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel ou para o seguro de acidentes de trabalho. O novo regime veio adoptar essa mesma solução para todos os seguros obrigatórios (art. 146º, nº 1).
Porém, no que concerne aos demais contratos de seguro, entre duas soluções que, em abstracto, seriam possíveis, o legislador consagrou aquela que suscita maiores dificuldades aos interessados, sem que se percebam as verdadeiras vantagens que derivam do regime consagrado (Sobre a crítica ao novo regime cfr. Moitinho de Almeida, ob. cit., págs. 24 a 26).
Em face do regime anterior, não estava prevista, em geral, a acção directa contra as seguradoras. Apesar disso, eram frequentes as situações de demanda directa das seguradoras (ou em regime de litisconsórcio voluntário com o segurado), solução que a jurisprudência e parte da doutrina sustentava na figura do contrato a favor de terceiro (art. 444º, nº 2, do CC) (Cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, págs. 258 a 260).
Posto que a solução não fosse inteiramente pacífica, eram pouco frequentes as questões que, na prática, se suscitavam a respeito da legitimidade passiva das seguradoras, pelo que seria de esperar que o novo regime acabasse por consagrar a solução que a prática já revelava ser a mais ajustada à realidade.
Com tal solução seriam acolhidos em simultâneo diversos interesses:
- Dos lesados que confrontariam logo seguradoras cuja solvabilidade lhes permite responder pelos danos causados;
- Dos segurados ou dos tomadores dos seguros que seriam substituídos (em casos de demanda exclusiva da seguradora) ou acompanhados (em caso de demanda litisconsorcial) pela respectiva seguradora, ficando, assim, imediata e substancialmente aliviados da carga de responsabilidade decorrente do sinistro e do ónus que implica a defesa judicial;
- Também das próprias seguradoras que, desta forma, poderiam assumir logo a direcção do litígio, na medida em que muito frequentemente estão em melhor posição no que concerne ao exercício de uma efectiva defesa quanto a pretensões fraudulentas, injustificadas ou excessivas.
É claro que em qualquer dos casos ficaria sempre acautelada a possibilidade de, através dos instrumentos processuais adequados, como a intervenção principal (também prevista no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), chamar ao processo o segurado ou o tomador do seguro, tendo em vista superar eventuais dificuldades no exercício do direito de defesa, designadamente em situações de falta de participação ou de dúvidas quanto ao sinistro.
7.2. A solução legal ficou a meio caminho e, além disso, é excessivamente complexa.
Embora se admita a intervenção da seguradora em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco assumiu (art. 140º, nº 1), a sua demanda directa fica, em princípio, dependente da existência de previsão contratual ou do início de negociações estabelecidas com o lesado, factor que é necessariamente posterior à ocorrência do sinistro que deveria servir para fixar o pressuposto processual da legitimidade passiva.
Não creio que, em termos substantivos ou em termos processuais, tenha sido adoptada a melhor opção, ficando por clarificar qual é efectivamente a posição jurídica da seguradora em face da relação material controvertida.
Admite-se expressamente a responsabilidade directa da seguradora, quer individualmente, quer em regime de litisconsórcio com o segurado, nos casos em que o contrato o preveja ou em que se tenham iniciado negociações com o lesado, o que nos reconduz à figura da legitimidade a título de parte principal.
Além disso, pode intervir em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnização, o que nos reconduz à figura do assistente em relação ao segurado ou ao tomador, tendo tal intervenção como objectivo auxiliá-lo na sua defesa, nos termos do art. 335º do CPC, acautelando, por esta via, os interesses decorrentes da transferência do risco.
Mas, considerando que o segurado poderá exercer o direito de regresso se vier a ser reconhecida a sua responsabilidade pelo sinistro, a intervenção da seguradora pode ser alcançada através do incidente de intervenção acessória provocada, nos termos dos arts. 330º e segs. do CPC, permitindo estender-lhe, desde logo, os efeitos do caso julgado que se formar com a eventual sentença condenatória (…).
(…) Assim, para além das desvantagens da solução no que respeita ao direito substantivo, a opção pela excepcionalidade da acção directa conduz a um regime jurídico-processual escusadamente complexo, o que poderia ter sido facilmente ultrapassado se tivesse sido adoptada outra opção em que, como regra geral, se admitisse aquela acção directa contra a seguradora, com ou sem demanda do segurado, sem embargo da intervenção deste quando se revelasse necessário.
Apesar do que se referiu, cremos que a formulação normativa não colidirá com a manutenção da solução que já anteriormente era defensável, através do recurso à figura do contrato a favor de terceiro, designadamente naqueles casos em que, independentemente de previsão contratual, a prestação, pela sua própria natureza, só possa ser paga a terceiro beneficiário, como sucede nos casos de responsabilidade civil ou de seguro de vida, com indicação de beneficiário diverso do segurado…”.
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Ou seja, parece resultar claro da Lei do Seguro que o legislador deixou bem expressa a sua opção pela inadmissibilidade da demanda direta da seguradora, fora dos casos, excecionais, previstos no artº 140º nºs 2 e 3 daquela Lei, mesmo sabendo da orientação da jurisprudência sobre a questão, ainda na vigência do Código Comercial.
Perante o exposto, não nos parece que possamos acolher uma solução jurídica diversa, em confronto da legislação em vigor, a qual, apesar das críticas que lhe são dirigidas (essencialmente pela falta de clareza) não deixou de proteger os lesados.
Como resulta do artº 140º nº2 e 3 da Lei do Seguro, caso as partes (ao qual o lesado é alheio) não tenham convencionado a possibilidade daquele demandar diretamente a seguradora em caso de sinistro, e o segurado não tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro, sempre poderá aquele indagar da existência de um contrato de seguro que faça a cobertura do sinistro de que foi vítima (caso exista, por exemplo, insolvabilidade do lesante) e tentar junto da seguradora do lesante a resolução extrajudicial da questão, pressuposto que lhe faculta a sua demanda direta, caso se frustrem as negociações.
Pensamos que ficaram ainda salvaguardados, nas hipóteses consideradas, os interesses do lesado, em termos de também não podermos afirmar, sem mais, que a atual Lei do Seguro comporta situações injustas para o lesado.
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Sempre se dirá também que, no caso dos autos, e não se verificando nenhuma da situações previstas na lei, face ao alegado contrato de seguro, a 3a. Ré terá um eventual direito de regresso contra a sua seguradora para ser ressarcida do prejuízo decorrente da perda da demanda.
Quer isto dizer que a intervenção da chamada, na situação dos autos, se restringe ao auxílio da defesa quanto à responsabilidade pelo pagamento peticionado e também para garantir a vinculação da mesma à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 323º nº 4).
Pois como acima se deixou dito, a intervenção acessória provocada destina-se a permitir a participação de um terceiro, que é responsável pelos danos produzidos no réu demandado pela procedência da acção, isto é, um terceiro perante o qual este réu possui, na hipótese de procedência da acção, um direito de regresso.
Por outras palavras, tal instituto jurídico visa tornar indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual acção de regresso contra o terceiro, nele repercutindo o prejuízo que lhe cause a perda da demanda (cfr. neste sentido M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 178; A. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in Processo Civil, pág. 65).
Concluímos do exposto que – mesmo reconhecendo que a questão não é pacífica -, entendemos que bem andou o tribunal a quo ao julgar não verificados os pressupostos da intervenção principal provocada da seguradora, convolando o incidente suscitado para a intervenção acessória (cfr. nesse sentido Ac desta RG de 25-09-2012, disponível em www.dgsi.pt).
Improcedem, assim as conclusões das alegações do recorrente, e mantém-se, na íntegra, a decisão recorrida.
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Sumário do Acórdão (artº 713º nº 7 do CPC):
I – Na intervenção principal provocada (passiva), o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do R., em termos de poder com ele ter sido demandado diretamente pelo A., “ab initio”
II - Não é esse o caso da ré seguradora, que, nos termos do artº 140º da Lei do Seguro, não pode, por regra, ser demandada diretamente pelo lesado (a não ser nas situações, excecionais, previstas nos nºs 2 e 3 daquele preceito).
III – A sua intervenção ao lado do segurado apenas pode ser admitida como acessória, para poder contra ele exercer um eventual direito de regresso.
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DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se Improcedente a Apelação, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) pelo recorrente.
Guimarães, 1.10.2015
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte
Francisco Xavier
Fonte: http://www.dgsi.pt