SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão
CÍVEL
Processo

733/14.4TJPRT-C.P1.S1

Data do documento

5 de setembro de 2017

Relator

Fonseca Ramos


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RELEVÂNCIA


Descritores

Qualificação da insolvência
Doação
Distrate
Simulação
Culpa
Reversão
Pessoa singular
Recurso de revista
Admissibilidade de recurso
Nulidade de acórdão
Falta de fundamentação


Sumário


I - Por força do regime regra instituído pelo CPC (ex vi art. 188.º do CIRE) e conquanto estejam preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade, é admissível recurso de revista do acórdão da Relação no âmbito do incidente de qualificação de insolvência.
II - O dever de fundamentar as decisões cumpre funções endoprocessuais – proporcionar às partes e ao julgador a compreensão do julgado – e extra-processuais – dar a conhecer à comunidade cidadã a razão pela qual os tribunais decidem num ou noutro sentido –, sendo que só a absoluta ausência de fundamentação gera a nulidade da decisão.
III - A iminência da situação de insolvência pode levar os devedores a escamotearem o seu património, impondo, por isso, a lei a estes certas actuações destinadas a salvaguardar a posição dos credores.
IV - Para efeitos da qualificação de insolvência, importa atender aos actos e omissões dos devedores – os quais radicam sempre em actuações conscientes e deliberadas –, irrelevando o resultado final desses comportamentos para os credores.
V - Dado que o direito não acolhe comportamentos antiéticos e contrários à boa fé (de que é exemplo a simulação) e que a conduta dos devedores deve ser olhada à vista das normas infringidas e dos valores por ela tutelados, não é aceitável que a caracterização da insolvência como fortuita ou culposa fique dependente do resultado que advenha dos actos em causa para os credores. Se assim não fosse, considerar-se-ia da mesma forma o devedor que, honradamente, assumiu ser de expor o seu património em benefício dos credores e o devedor que, não o fazendo, acabou por distratar os negócios lesivos dos interesses destes.
VI - Assim, devem sofrer as consequências previstas no art. 189.º do CIRE, os devedores que, no período fatal a que alude o n.º 1 do art. 186.º do CIRE, doaram ao seu filho dois imóveis e que, mais tarde, vieram a distratar esse contrato, vindo depois a prometer vender um dos imóveis a terceiro – o que, todavia, não impediu a apreensão para a massa insolvente –, tendo sempre actuado com o propósito de evitar a cobrança coerciva por parte dos credores.



Proc. 733/14.4TJPRT-C.P1.S1
R-617 [1]
Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




No presente incidente de qualificação da insolvência, o BANCO AA, S.A. veio apresentar alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 188.º, nº1, do CIRE, pugnando pela qualificação da insolvência de BB e de CC como culposa.

O Administrador de Insolvência (AI) apresentou o parecer a que alude o art. 188.º, nº2, do CIRE, propondo a qualificação da insolvência como fortuita.

O Ministério Público aderiu ao requerimento do credor BANCO AA, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa.

Cumprido o disposto no nº5 do art. 188.º do CIRE, foi apresentada oposição, nos termos que constam do requerimento de fls. 60 e ss.

Foi proferido despacho saneador, procedendo-se ainda à selecção dos temas de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

***

Foi proferida sentença cuja decisão tem o seguinte teor:

“Em conformidade com o exposto, e de acordo com os preceitos legais indicados, decide-se:

1. Qualificar a insolvência de BB e CC como culposa.

2. Declarar a inibição de BB e CC para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 (dois) anos;

3. Declarar a inibição de BB e CC para o exercício do comércio durante um período de 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

Custas pela massa insolvente.
Registe e notifique.
Extraia certidão da presente sentença e remeta à Conservatória do Registo Civil (art. 189.º, nº 3, do CIRE).”

***

Inconformados, os insolventes recorreram para o Tribunal da Relação do … que, por Acórdão de 6.4.2017, fls. 158 a 165 - julgou procedente a Apelação e revogou a sentença recorrida, qualificando a insolvência de BB e CC como fortuita.

***

Inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, o credor BANCO AA que alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O acórdão recorrido revogou a decisão proferida pelo Tribunal de l.ª Instância, qualificando a insolvência de BB e de CC como fortuita, sem ter alterado a matéria de facto, na qual foi dado como provado que os insolventes, dentro dos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, simularam doar ao seu filho dois imóveis, apenas com o intuito de enganar e prejudicar os seus credores.

1.1. Não sendo alterada a matéria de facto, coloca-se a dúvida sobre as razões de Direito que levaram o Tribunal da Relação do … a revogar a decisão de primeira instância, considerando que o Tribunal de l.ª Instância tinha feito uma errada interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto.

1.2. Porém, essas razões de Direito não foram explicitadas no acórdão recorrido, que se limita a transcrever as considerações jurídicas constantes da sentença elaborada em primeira Instância, para depois concluir que não houve uma “efectiva disposição do imóvel”, sem explicar em que medida é que não foi preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa prevista no art. 186º, nº2, al. d) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.

1.3. A não especificação dos fundamentos de Direito que estão na base da decisão impede o recorrente de compreender o percurso lógico seguido pelo pensamento do julgador, desconhecendo-se as premissas em que se baseia a conclusão de que não houve uma “efectiva disposição do imóvel”: será que é por a doação ter sido simulada? será que é por a doação, passados alguns meses, ter sido revogada também de forma simulada? e, supondo não ser aplicável a presunção inilidível da al. d) do art. 186.° nº2 do CIRE, porque é que não será aplicável outra das presunções inilidíveis previstas no mesmo artigo? e porque é que não estarão preenchidos os pressupostos gerais de qualificação da insolvência como culposa, previstos no art. 186.° n.º1 do CIRE?

1.4. O desrespeito do dever de fundamentação da decisão judicial deixa estas questões sem resposta, cerceando o direito de defesa do recorrente e o direito de reagir a uma decisão judicial que considera injusta e constitui também uma clara violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo (art. 20.° n.º4 da Constituição da República Portuguesa).

1.5. A não especificação dos fundamentos de Direito que justificam a decisão é cominada com nulidade (art. 615.°, n.º1, al. b) do Código de Processo Civil), que expressamente se invoca.

1.6. Ainda assim, o recorrente, por uma questão de precaução, não pode deixar de tentar reconstituir o pensamento (não explicitado) do julgador, tendo presente que o art. 186.º n.º1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas consagrou um dever geral de abstenção da prática de actos que criem ou agravem uma situação de insolvência, cuja violação será merecedora de uma resposta sancionatória e preventiva, desde que preenchidos os pressupostos gerais enumerados no mesmo artigo: facto (activo ou omissivo) praticado pelo devedor ou os seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; culpa (dolo ou culpa grave); criação ou agravamento da situação de insolvência; nexo de causalidade entre o facto praticado e a criação ou agravamento da situação da insolvência.

1.7. Reconhecendo as dificuldades com que o julgador se poderia deparar na apreciação destes pressupostos gerais, o legislador enumerou no art. 186.° nº 2 do CIRE uma série de condutas que, de acordo com as regras da experiência comum, criam ou agravam, culposamente, uma situação de insolvência, presumindo, iniludivelmente, a verificação dos pressupostos gerais da insolvência culposa (art. 186.° n.°1).

1.8. Entre essas presunções inilidíveis encontra-se a disposição de um bem que não seja acompanhada do recebimento do seu respectivo valor, beneficiando um terceiro e diminuindo o património do devedor, em prejuízo dos seus credores (art. 186.º n.º2, al. d)), como é o caso da doação ou da venda de um bem abaixo do seu valor real.

1.9. A 26 de Abril de 2012 (dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, que ocorreu a 5 de Maio de 2014), os insolventes doaram ao seu filho dois imóveis, presumindo-se, iniludivelmente, a criação ou agravamento culposo da sua situação de insolvência, independentemente da prova de um prejuízo concreto de um credor (art. 186.º n.º2, al. d)) – presunção que visa acautelar um perigo de criação ou agravamento da situação de insolvência.

1.10. A simulação do negócio de doação não impede a aplicação da presunção do art. 186.º n.º2, al. d) do CIRE, sob pena de perder toda a sua utilidade, já que, de acordo com as máximas da experiência comum, o meio típico de dissipação de património, em prejuízo de um credor, consiste na doação simulada de um bem a alguém de confiança (normalmente um filho, como acontece nos presentes autos)

1.11. No caso concreto existe a agravante de os próprios insolventes terem confessado que “os negócios estavam mal” e que a declaração de uma vontade diferente da real tinha como único intuito o de enganar e prejudicar os seus credores, que assim não poderiam penhorar s bens doados.

1.12. A revogação da doação foi tão simulada como o próprio negócio de doação e não correspondeu a qualquer intenção dos insolventes de repor a legalidade jurídica, mas apenas a de continuar a impedir que os seus credores satisfizessem o seu interesse através da venda dos dois bens imóveis.

1.13. Tanto que, após a revogação da doação simulada, os imóveis não foram registados em nome dos insolventes, para que os seus credores não os pudessem penhorar.

1.14. Assim, os insolventes dispuseram do seu património em benefício de terceiro (art. 186.º n.º2, al. d)), ou, pelo menos, ocultaram o seu património, o que sempre preencheria a presunção inilidível do art. 186.° nº 2, al. a).

1.15. Mesmo que a conduta dos insolventes não preenchesse uma das presunções inilidíveis do art. 186.° n.°2 do CIRE, preencheria sempre os pressupostos gerais de qualificação da insolvência como culposa:

a) facto, consubstanciado na doação dos imóveis;
b) ilicitude do facto, porque violador da garantia geral das obrigações em que consiste o património dos insolventes e do dever geral de abstenção da prática de actos que agravem a situação de insolvência;
c) culpa, sendo que, no caso concreto, verifica-se um dolo intenso e directo, dado que a vontade dos insolventes era directamente dirigida à dissipação do seu património (conforme confessaram);
d) agravamento da situação de insolvência, porque o património dos insolventes diminuiu (embora ficticiamente), sem que tenha diminuído, igualmente, o seu elevado passivo, que já na altura não tinham capacidade para satisfazer e que era constituído por uma dívida de € 9.717.759,04 (nove milhões, setecentos e dezassete mil, setecentos e cinquenta e nove euros e quatro cêntimos) ao Banco recorrente, emergente do crime de burla qualificada praticado pelo insolvente BB;
e) nexo de causalidade entre a actuação ilícita e dolosa e o agravamento da situação de insolvência, podendo até ser dito que, no caso concreto, o agravamento da insolvência é consequência necessária e directa da actuação ilícita e culposa.

1.16. Esta violação flagrante do dever de abstenção da prática de actos que criem ou agravem uma situação de insolvência terá, obrigatoriamente, que ser sancionada, tal como entendeu o Tribunal de 1.ª instância, sob pena de retirarmos ao instituto da insolvência culposa as finalidades sancionatória e preventiva que o legislador lhe quis incutir, em manifesto prejuízo da estabilidade da economia e da segurança do comércio jurídico, que ficarão, totalmente, vulneráveis perante pessoas que praticam actos com o intuito confessado de prejudicar os seus credores.

1.17. A qualificação da insolvência como fortuita e a não inibição dos insolventes para a administração do património de terceiros, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de órgão de uma pessoa colectiva será o reconhecimento da sua aptidão para o exercício destas funções, depois de estes terem confessado agir, exclusivamente, em prejuízo dos seus credores.

1.18. Por todas estas razões deve ser repristinada a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, revogando o acórdão recorrido, que viola os arts. 154.°, 607.º n.º3, 615.° n.°1, al. b), 663.° n°s 2 e 5 e 666.° do Código de Processo Civil, o art. 20.° n°s 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa e o art. 186.° n.°1 e o n.° 2, als. a) e d) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.

Termos em que se requer que a V. Exas. que seja julgado procedente o presente recurso de revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando a decisão proferida pelo tribunal de l.ª Instância.

Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, nos termos do art. 14º, nº1, do CIRE, já que o Recorrente não invocou nenhum Acórdão das Relações ou do Supremo Tribunal de Justiça em oposição ao sentenciado no Acórdão recorrido. Por via dessa inadmissibilidade as nulidades, aduzem, teriam de ser invocadas perante o Tribunal recorrido.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Mediante escritura pública celebrada no Cartório Notarial do … a cargo do Notário DD, no dia 26 de abril de 2012, os insolventes BB e CC declararam doar a EE a fração autónoma designada pela letra A descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº61 (freguesia de …) e o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1825, …, tendo o segundo outorgante aceitado a doação.

2. Mediante escritura pública celebrada no Cartório Notarial a cargo da Notária FF, no dia 1 de outubro de 2012, os insolventes BB e CC e EE declararam distratar a referida doação, por mútuo acordo, “voltando assim os identificados imóveis à posse dos primeiros outorgantes”.

3. Encontra-se assinado por GG, Lda., na qualidade de primeiro outorgante, e BB e CC, na qualidade de segundos outorgantes, o acordo designado “contrato promessa de compra e venda”, junto a fls. 331 e ss. do Apenso D (execução fiscal), com o aditamento junto a fls. 332, cujo teor se dá por reproduzido.

4. Na sequência da celebração do acordo descrito em 3.º, em 12 de Março de 2013, a sociedade GG, Lda. veio deduzir embargos de terceiro no âmbito do processo de execução fiscal nº 1783201001060783, conforme requerimento junto a fls. 340 do apenso D, cujo teor se dá por reproduzido.

5. Em consequência do referido em 4.º, em 13 de Março de 2013, foi proferido no processo de execução fiscal, o seguinte despacho: “Encontrando-se agendada para esta data pelas 10:00h a venda na modalidade de leilão electrónico do bem imóvel penhorado nos autos, foi a mesma realizada àquela hora, e adjudicado o bem ao BANCO AA. Alguns minutos decorridos após a realização da venda, este serviço de finanças tomou conhecimento de que foram deduzidos embargos de terceiro por GG, Lda., relativamente ao bem penhorado nos autos, cuja petição foi remetida a este serviço através de email de 12-03-2013 (18H37) e ainda não tinha sido lido à hora agendada para a venda. Face ao referido, suspendam-se os autos em tudo o que se refere ao bem penhorado até ser proferida decisão judicial. Notifique”.

6. Em 5 de Maio de 2014, HH requereu a declaração de insolvência dos Requeridos, tendo a insolvência sido declarada por sentença proferida em 3 de dezembro de 2014.

7. Em 29 de Janeiro de 2015, o Administrador da insolvência apreendeu para o presente processo de insolvência, entre outros, os imóveis descritos em 1.º.

8. Contrariamente ao declarado na escritura pública referida em 1.º, os insolventes não pretenderam doar e EE não pretendeu aceitar a doação dos imóveis nela descritos.

9. A escritura pública foi celebrada apenas com o intuito de evitar que o património dos insolventes fosse objecto de qualquer acto de cobrança coerciva por parte de terceiros credores.

10. Com a outorga da escritura pública referida em 2.º, os insolventes pretenderam assegurar o retorno do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1825, … à sua titularidade e assim assegurar a validade do acordo designado “contrato promessa” referido em 3.º, sempre com o intuito de evitar que o imóvel fosse objecto de qualquer acto de cobrança coerciva por parte de terceiros credores.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o recurso – afora as questões de conhecimento oficioso –, importa saber se o Acórdão é nulo, por falta de fundamentação, e se a insolvência deve ser qualificada como culposa.

Antes importa afirmar que a decisão é passível de recurso de revista.

O art. 14º, nº1, do CIRE estabelece, como regra, um grau de recurso que se esgota com a apelação. Mas apenas é assim no processo de insolvência e no apenso de embargos à declaração de insolvência. Em tais casos, da decisão do Tribunal da Relação, apenas cabe recurso de revista se o Recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.

Nos demais apensos, como, no caso, o de qualificação da insolvência - art. 188º do CIRE - vale o regime-regra do Código de Processo Civil, ou seja, do Acórdão revogatório da Relação cabe recurso de revista, desde que preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade atinentes à alçada do tribunal a quo, ao valor da causa e à sucumbência – art. 629º, nº1, do Código de Processo Civil.

Neste entendimento, que é também o desta 6ª Secção a quem cabe competência exclusiva para decidir litígios em matéria de comércio, a decisão é recorrível - cfr. por todos o Acórdão este Tribunal de 13.11.2014 – Proc. 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1 – in www.dgsi.pt – de que foi Relator o aqui Ex.mo 2º Adjunto.

Apreciando a 1ª questão suscitada no recurso.

Entende o Recorrente que a Relação, com base nos mesmos factos considerados provados na 2ª Instância, revogou a decisão por considerar fortuita a insolvência dos devedores, sem que tivesse fundamentado as razões de tal entendimento, não especificando os fundamentos de direito, pelo que enferma de nulidade nos termos do art. 615º, nº1, b) do Código de Processo Civil, tendo violado o preceito constitucional do art. 20º, nºs 1 a 4.

O vício gerador de nulidade da decisão, assacado pelo recorrente, consiste, na alegada omissão de fundamentação de direito e está previsto no art. 615º, nº1, b) do Código de Processo Civil: com tal preceito se relaciona o art. 205º da Lei Fundamental e, na lei ordinária, o art. 154º do Código de Processo Civil.

O dever de fundamentação cumpre funções de natureza endoprocessual colimadas ao objectivo de proporcionar às partes e ao julgador a intelegibilidade da decisão. Só adquirida a percepção factual e jurídica do decisor, podem as partes recorrer eficazmente e exercer os direitos processuais que a lei processual e constitucional lhes confere. Cumpre, também, uma função que exorbita a concreta relação jurídico-processual, possibilitando à comunidade e à cidadania conhecer as razões por que os Tribunais decidem neste ou naqueloutro sentido.

A omissão geradora de nulidade é, na opinião consolidada da jurisprudência e da doutrina, a omissão absoluta de fundamentação que deve reportar-se às decisões que não sejam de mero expediente. Por todos o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.4.2008, in www.dgsi.pt - “Só a absoluta falta de motivação, que não a insuficiência ou mediocridade da fundamentação, de facto e (ou) de direito, corporiza a nulidade do acórdão a que se reporta a al. b) do art.668º [agora art. 615º. nº1 b) do Código de Processo Civil] ”

Reconhecendo-se que o Acórdão recorrido não é loquaz na sua fundamentação de direito, o certo é que não existindo absoluta omissão, não existe a arguida nulidade.

Quanto à questão de fundo:

Divergiram as instâncias na subsunção ao direito insolvencial da mesma matéria de facto, como enfatiza o recorrente. Está em causa a qualificação da insolvência dos devedores recorridos.

O inovador incidente de qualificação da insolvência foi inspirado pela Ley Concursal espanhola, aprovada pela L 22/2003, de 9 de Julho. Visa apurar, sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil, “Se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa.” (n.º40 do preâmbulo do CIRE).

No que se refere às modalidades de qualificação da insolvência, o art. 185º do CIRE estabelece que pode ser culposa ou fortuita, qualificação que não vincula para efeitos de decisão penal, nem relativamente às acções a que alude o art.82º [norma inserida no capítulo - “Efeitos da declaração de falência sobre o devedor e outras pessoas” - “Efeitos sobre os administradores e outras pessoas”].

O artigo 186.º do CIRE:
(Insolvência culposa)

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º

3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.”

No caso, a norma crucial para qualificação da insolvência dos devedores pessoas singulares, é a al. d) nº2 do art. 186º do CIRE, aplicável adaptadamente, por força do nº4, que contém presunção inilidível de insolvência culposa, nos casos em que o devedor, nos três anos anteriores ao início do processo, tiver disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros.

A insolvência dos recorridos foi requerida em 5.5.2014 e declarada por sentença de 3.12.2014.

Os insolventes, por escritura pública de 26.4.2012, declararam doar ao seu filho EE a fracção autónoma e o prédio urbano identificados em 1. dos factos provados, aquela sita em … e este em ….
No dia 1.10.2012, doadores e donatário declararam, por escritura pública notarial, distratar a referida doação, por mútuo acordo, “voltando assim os identificados imóveis à posse dos primeiros outorgantes” [os insolventes doadores].

Os insolventes celebraram um contrato-promessa de compra e venda, na qualidade de promitentes vendedores, relativo ao imóvel sito em …, à empresa “GG”, promitente compradora, que, em processo de execução fiscal pendente contra os insolventes, ante a iminência da venda, deduziu embargos de terceiro, não se tendo realizado a venda na data aprazada de 13.4.2013.

Em 29.5.2015, o administrador da insolvência apreendeu para o processo de insolvência, entre outros, os imóveis referidos em 1. dos factos provados.

Os negócios implicados nas doações e no contrato promessa celebrado com a sociedade “GG”, não foram queridos, apenas visando evitar a cobrança coerciva por parte dos credores.

Neste quadro factual, o Administrador da Insolvência (AI) emitiu parecer no sentido de qualificar a insolvência como fortuita, do que discordou o Ministério Público.

A insolvência será culposa se houver actuação dolosa ou gravemente negligente dos insolventes nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. No caso, a insolvência foi requerida, em 5 de Maio de 2014, pelo que o período interdito se situa, termo inicial, em 5 de Maio de 2011. Os actos de alienação e doação datam de 26.4.2012, estando abrangidos pelo período fatal: os negócios de alienação gratuitos – doações – foram praticados, dolosamente, dentro daqueles três anos, como se provou em confissão judicial dos devedores – apud acta da audiência de discussão e julgamento a fls. 113 verso.

Os negócios de alienação, assim como o contrato promessa, foram celebrados com o declarado propósito de esvaziar o património dos devedores, ante a iminência dos credores fazerem valer os seus direitos.

O facto de os negócios terem sido “revertidos”, ou seja, terem sido distratadas as doações e, mesmo o imóvel objecto mediato do contrato promessa, que possibilitou a dedução de embargos de terceiro à venda em execução fiscal, não terem impedido que o AI tivesse apreendido para a Massa insolvente os imóveis em questão, implica considerar que, objectivamente, não houve prejuízo para os credores, e, por isso, deve considerar-se a insolvência como fortuita, ou, ante aquela presunção do nº2 al. d) do art. 186º do CIRE, é inexorável que deva considerar-se culposa?

A sentença da 1ª Instância considerou que a insolvência foi culposa, não só porque os actos de disposição ocorreram no período de três anos anteriores ao início do processo de insolvência, mas, também, por se ter provado a existência de simulação negocial dos referidos negócios com o fito de prejudicar os credores.

O Acórdão recorrido, a fls. 169, afirmou:

“Perante o circunstancialismo fáctico provado é de concluir, que apesar do intuito que presidiu à celebração da escritura pública de distrate, não mais houve disposição do imóvel que foi logo apreendido para a massa insolvente.
Na verdade, a doação dos imóveis foi feita com o intuito confessado de retirar o património à acção dos seus credores e a subsequente revogação e celebração de negócios com terceiros tendo por objecto os imóveis anteriormente doados revelam a intenção simulatória dos actos, mas o certo é que não houve uma efectiva disposição do imóvel, exigida pelo supracitado art° 186°, n°2, alínea d) do CIRE.
Assim conclui-se que a insolvência tem de ser qualificada como fortuita”.

Se bem interpretamos o Acórdão recorrido, a consideração determinante para a qualificação da insolvência como fortuita, foi o facto de, apesar da actuação dos insolventes, os bens terem “regressado” ao seu património.

Salvo o devido respeito discordamos.

A situação de insolvência iminente pode constituir uma tentação para os devedores escamotearem o seu património. Por isso, é que a lei insolvencial encerra conceitos como situação económica difícil e insolvência iminente, entre outros, e pretende através da imposição aos devedores pré-insolventes de certas actuações, que salvaguardem a posição dos seus credores.

Em sede de qualificação da insolvência, importa analisar os actos e omissões do devedor: a sua actuação. Os actos que são decisivos para a qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, assentam em presunções ilidíveis umas, inilidíveis outras, mas sempre radicando em actuações volitivas, conscientes, deliberadas do devedor insolvente.

Um dos actos que, no direito insolvencial, como no direito civil, revela acentuado desvalor jurídico e ético-negocial é a simulação – art. 240º do Código Civil – por implicar um fingimento, um deliberado conluio, um pacto doloso, tendo os pactuantes simuladores a intenção deliberada de enganar terceiros, no caso os credores.

Por tal, irreleva o “arrependimento”, se disso se pode falar.

Olhar a actuação dos devedores sob o prisma do resultado final, mesmo que, por força da sua censurável actuação, não seja nefasto: ponderar o acto em si mesmo, deixando de apreciar e valorar a actuação dos insolventes, relevando apenas o resultado, levaria a considerar, que, não tendo havido prejuízo final para os credores, a insolvência deveria ser considerada fortuita, não querida; se os credores, porventura, tiverem sido prejudicados a insolvência deveria considerar-se culposa. Cremos que este critério é inaceitável.

Na ponderação de que o Direito não acolhe comportamentos antiéticos e lesivos da boa fé, tendo em conta os interesses que se jogam no contexto da insolvência, mormente, quando se trata de apreciar, em termos não penais a conduta dos devedores, o que interessa é olhar a sua actuação à luz das normas infringidas e dos valores que tutelam, sob pena de, casos como o que versamos, ficarem colocados no mesmo patamar de avaliação: o devedor que não alienou património, não fez doações a próximos e, honradamente, assumiu que deveria expor o seu património em benefício dos seus credores, e aquele que, fazendo ao invés, acabou por distratar ou revogar os negócios lesivos, seriam considerados da mesma maneira.

Na convicção de que a qualificação da insolvência visa punir ou não punir, civilmente, a actuação de quem no mundo dos negócios, ou da sua vida económica, se pauta por actuações que devem merecer a reprovação do direito, não se pode considerar que os recorridos actuaram de modo a não deverem sofrer a reprovação dos seus actos: as “sanções” previstas no art.189º do CIRE, inerentes à insolvência culposa em que, dolosamente, incorreram.

Neste entendimento o Acórdão recorrido não merece concordância, sendo revogado.

Decisão:

Concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e, consequentemente, se repristinando a sentença apelada.

Custas totais pelos Recorridos.

Supremo Tribunal de Justiça, 05 de setembro de 2017
Fonseca Ramos – Relator
Ana Paula Boularot
Pinto de Almeida
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[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida



Fonte: http://www.dgsi.pt