SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão
CÍVEL
Processo

184/12.5TBVFR.P1.S1

Data do documento

18 de junho de 2015

Relator

Abrantes Geraldes


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RELEVÂNCIA


Descritores

Contrato de seguro
Sobresseguro
Princípio indemnizatório


Sumário


1. No seguro de danos próprios, a indicação pelo tomador de seguro de um valor superior ao valor do bem segurado traduz uma situação de sobresseguro que é resolvida através da aplicação dos arts. 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo Dec. Lei nº 72/08.

2. O sobresseguro não exonera a seguradora de responsabilidade, a qual responde em função do princípio indemnizatório até ao valor do dano determinado em função do valor do bem segurado.


I - AA veio propor a presente acção em processo comum sob a forma ordinária contra BB - Companhia de Seguros, SPA, pedindo que a R. seja condenada a pagar à A. a quantia de € 33.500,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.

Alegou que é proprietária de um veículo automóvel que se encontrava segurado na R. e que se incendiou, tendo ficado totalmente destruído.

Nos termos da apólice, e de acordo com a informação da própria R., a perda total do veículo implicava o pagamento da indemnização de € 33.500,00.

A R. contestou e confirmou a existência do contrato de seguro celebrado entre as partes relativo ao veículo em causa, abrangendo danos próprios no valor de € 34.500,00, mas considera que o contrato deverá ser anulado, uma vez que o veículo em causa já tinha sofrido 6 acidentes, no período de 5-1-05 a 25-1-11, sendo que no acidente imediatamente anterior ao sinistro a que se referem os presentes autos o veículo sofreu danos que impossibilitavam a sua circulação e afectavam gravemente as suas condições de segurança e cuja reparação não se mostrava viável, sendo, por isso, considerado em perda total.

Os respectivos salvados foram vendidos à A. que se limitou a reparar o exterior, dando-lhe a aparência de arranjado, sendo que apesar de a A. ter obtido o certificado de inspecção, o mesmo é falso, pois nunca sujeitou aquele veículo a inspecção.

A A. celebrou o contrato de seguro com a R. sem que o veículo tenha sido inspeccionado, sem informar que o veículo tinha sofrido os sobreditos danos de perda total, sem informar que a matrícula tinha sido cancelada ou devia tê-lo sido e que o verdadeiro objecto do contrato eram uns meros salvados que não valiam mais de € 5.000,00, tendo indicado o valor de € 34.500,00.

A A. sabia de todos os factos, tendo-os declarado e omitido de forma dolosa para obter a celebração do contrato de seguro, sabendo que a R., caso tivesse conhecimento dos factos, não o celebraria.

Caso não se entenda que o contrato é anulável, com a consequente absolvição do pedido, a R. apenas deverá ser condenada a pagar o valor real do veículo, na pior das hipóteses € 22.474,00.

A A. apresentou réplica, na qual reafirmou o alegado na petição inicial, impugnando a versão dos factos trazida aos autos pela R. e pugnando pela procedência da acção e ainda pela condenação da R. como litigante de má fé em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00.

Foi proferida decisão a julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo-se a R. do pedido.

A A. apelou e a Relação revogou a sentença e condenou a R. no pedido formulado.

A R. interpôs recurso de revista em que advoga a anulabilidade do contrato de seguro, por omissão de informações relevantes para a aceitação do contrato de seguro. Para a eventualidade de improceder essa excepção, pretende que a indemnização seja reduzida para o valor efectivo do veículo, em lugar o valor referido no contrato de seguro.

Cumpre decidir.

II – Factos provados:
1. A A. é dona do veículo automóvel marca Renault, modelo Espace, com a matrícula ...-...-XC;
2. Entre a A. e a R. foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel, intitulado BB Auto, titulado pela apólice nº …, tendo por objecto o veículo automóvel identificado em 1., com início a 5-8-10, mediante o qual a primeira transferiu para a segunda a responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo automóvel, incluindo danos próprios, e que se rege pelas condições particulares constantes do documento de fls. 37 a 39, sendo o capital seguro para os danos próprios no montante de € 34.500,00;
3. O veículo automóvel identificado em 1. foi comprado no estado de usado, encontrava-se em bom estado de conservação e com todos os seus órgãos mecânicos em funcionamento;
4. A A. indicou como capital do seguro para o veículo automóvel o montante de € 34.500,00, quando o seu valor, no estado em que se encontrava, se cifrava sensivelmente em não mais que € 22.474,00;
5. O valor do veículo automóvel, mesmo antes do sinistro de 16-3-10, não era superior a € 22.474,00;
6. A A., através do seu marido CC, a quem confiou integralmente e sem reservas todo o processo de compra e de celebração do contrato de seguro relativo ao veículo em causa, sabia que o veículo não valia € 34.500,00 e não foi esse o valor por que o comprou, e que o mesmo não valeria mais do que cerca de € 22.500,00;
7. A 25-1-11, cerca das 22.10 h, a A. conduzia o referido veículo automóvel na EN 224, sentido Estarreja-S. João da Madeira, quando o mesmo começou a arder, sendo que aquando da chegada da GNR e dos Bombeiros já não foi possível impedir o alastrar do incêndio;
8. Em consequência, o veículo automóvel ficou destruído, nomeadamente, os bancos, o tablier, os cintos, as manetes e os elementos das portas ficaram carbonizados e o mesmo sucedeu com o exterior traseiro;
9. Ficou ainda com estragos na pintura e na estrutura e nos elementos ópticos e pára-choques;
10. Foi participada à R. a ocorrência, a 25-1-11, de um sinistro com intervenção do veículo automóvel identificado em 1., a qual iniciou as diligências de averiguação para efeito de peritagem;
11. O veículo automóvel identificado em 1. apresentava estragos em toda a sua extensão;
12. A R. enviou à A. a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 18, datada de 8-2-11, onde se lê, para além do mais, o seguinte:
“Após vistoria (…) efectuada pelos nossos serviços técnicos (…) verificou-se que nos termos das condições contratuais e demais legislação em vigor não nos é possível dar instruções de reparação da mesma em virtude de estarmos perante um sinistro abrangido pelo conceito de perda total, pelo que não sendo possível a sua reconstituição natural fixaremos a eventual indemnização em dinheiro (…).
Nesta conformidade, informamos que para efeito de indemnização iremos considerar o valor de € 33.500,00 quantitativo este que corresponde ao valor venal da viatura antes do sinistro, deduzido do valor do salvado, que se fixa em € 260,00. (…)
O valor acima referido encontra-se, nos termos contratuais da apólice, deduzido da respectiva franquia.
Sucede, porém, que o nosso processo se encontra em fase de instrução, motivo pelo qual o valor supra mencionado dependerá da assunção da responsabilidade pela ocorrência do sinistro. (…).
Serve ainda a presente para alertar V. Exª para (…) que, em caso de perda total do veículo, a matrícula é cancelada (…).”;
13. Na sequência do facto descrito em 12. e já depois da data mencionada em 14., a R. apurou que o veículo automóvel matrícula ...-...-XC foi matriculado em Março de 2004 e que, entre 5-1-05 e 25-1-11, sofreu 5 sinistros, a saber:
- Em 5-1-05, encontrando-se válido um contrato de seguro que incluía danos próprios celebrado com a DD Seguros Gerais;
- Em 7-3-06, encontrando-se válido um contrato de seguro que incluía danos próprios celebrado com a EE Insurance PLC;
- Em 20-5-09, encontrando-se válido um contrato de seguro que incluía danos próprios celebrado com a FF Seguros, S.A.;
- Em 20-1-10, encontrando-se válido um contrato de seguro que incluía danos próprios celebrado com a FF Seguros, S.A.;
- Em 16-3-10, encontrando-se válido um contrato de seguro que incluía danos próprios celebrado com a FF Seguros, S.A.;
14. Tais seguradoras pagaram as indemnizações aos segurados, ao abrigo da referida cobertura;
15. No sinistro de 16-3-10, o veículo automóvel sofreu estragos, que a seguradora considerou como “perda total”, por o valor da reparação estimado ser superior ao valor segurado;
16. Nessa sequência, a seguradora pagou ao segurado GG a quantia de € 18.235,84 e considerou o veículo como salvados, atribuindo-lhe o valor de € 5.000,00;
17. O veículo ficou na posse do GG e este não o reparou e não o entregou para abate ou para a sucata;
18. Em 24-3-10, GG vendeu o veículo automóvel a HH, pelo preço de € 5.600,00, sendo por este reparado;
19. A 8-4-10, HH vendeu o veículo automóvel à A., através de negociação levada a cabo pelo marido desta, CC;
20. A A., depois de realizar a inspecção, obteve o certificado de inspecção periódica com o nº CD …, datado de 15-7-10;
21. Aquando da celebração do contrato de seguro, a R. tinha acesso informático, designadamente à informação sobre os sinistros referidos em 15.;
22. A R., caso tivesse conhecimento das circunstâncias dadas por assentes relativas ao veículo em causa, designadamente o facto de ter sido considerado perda total e/ou o seu verdadeiro valor, não teria celebrado o contrato de seguro identificado em 2., o que era do conhecimento da A.;
23. Com data de 23-6-11, a R. enviou à A. uma carta de cobrança de prémio de seguro, na qual atribui ao veículo automóvel identificado em 1. o valor de € 29.808,00.

III – Decidindo:

1. Tendo em conta a matéria de facto que foi considerada provada e não provada, a única questão susceptível de interferir na procedência da acção ou da defesa respeita à diversidade, aquando da outorga do contrato de seguro, entre o valor real do veículo e o que lhe foi atribuído pela segurada. O veículo não valia mais de € 22.474,00, sendo que, apesar de conhecer esse facto, a segurada indicou o valor de € 34.500,00.

Nenhum efeito pode ser projectado a partir do historial anterior do veículo segurado, uma vez que os diversos sinistros que o mesmo sofreu foram participados a outras seguradoras, por outros interessados e ao abrigo de outros contratos de seguro, factos que, aliás, estavam disponíveis para consulta por parte da R. aquando da aceitação deste concreto contrato de seguro.

Além de não se ter apurado que a A. tivesse conhecimento desse historial de acidentes ou até de num dos eventos o veículo ter sido considerado em “perda total”, com a correspondente entrega de uma indemnização ao respectivo proprietário que outorgara essoutro contrato de seguro, provou-se que o mesmo foi adquirido pela A. numa altura em que já fora reparado. E tendo sido apresentado à necessária inspecção legal, o certo é que lhe foi passado o certificado para efeitos de poder circular, o qual já existia na data da outorga do contrato.

2. Apurou-se, contudo, que caso a R. tivesse conhecimento do verdadeiro valor do veículo, não teria celebrado o contrato de seguro, o que era do conhecimento da A.

Neste facto sustenta a R. a pretensão de revogação do acórdão recorrido, mas sem razão, pois que, sem embargo daquela percepção subjectiva, o facto de ter sido indicado pela A. o valor de € 34.500,00, em lugar de um valor próximo do valor real do veículo, ou seja, € 22.474,00, não é suficiente para produzir os efeitos anulatórios do contrato de seguro.

A matéria da exactidão das declarações do tomador do seguro é regulada especificamente nos arts. 24º e 25º do RJCS, de onde decorre que deve declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco do segurador.

Neste contexto, o diferencial entre o valor real do bem segurado e aquele que é indicado aquando da apresentação da proposta de celebração do contrato de seguro não constitui um facto anódino para a decisão de aceitação do contrato de seguro por parte da seguradora. Todavia, não vai ao ponto de determinar a anulação do contrato.

Por um lado, nada permite afirmar que tal diferencial fosse decisivo para a aceitação do contrato. Por outro lado, ainda que porventura assim ocorresse, a seguradora dispunha de meios que permitiam avaliar o bem segurado, avaliação essa que, em geral, nem sequer é feita mediante exame do veículo, mas apenas através da aplicação de tabelas em que os valores dos veículos são determinados, para efeito de assunção da responsabilidade da seguradora e de determinação dos valores dos prémios de seguro, em função da marca, modelo e ano de fabrico.

Tal inibe a R. de invocar a anulabilidade de todo o contrato de seguro com fundamento na inexactidão da informação relativa ao valor venal do veículo, com os efeitos que pretende obter, ou seja, com a total exclusão da sua responsabilidade.

Importa ter ainda em atenção que a seguradora, na data em que aceitou a proposta contratual, estava sujeita ao regime do Dec. Lei nº 214/97, de 16-8, que, além de prever a actualização anual do valor dos veículos, para efeitos de cobrança dos prémios (tabelas de desvalorização automática), prescreve ainda o dever de informação do tomador do seguro relativamente ao valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total (art. 7º, al. b)), exigindo da sua parte uma diligência adicional que não passasse simplesmente pela aceitação “cega” do valor do veículo indicado pela A.

3. Porém, o facto de não proceder a anulabilidade total do contrato não significa que a seguradora se encontre vinculada ao pagamento do quantitativo correspondente ao capital que foi declarado pelo tomador do seguro, sendo imposta, pela via da redução do contrato, a redução da indemnização até ao valor venal do bem segurado.

O fundamento decisivo para a recusa da tese da R. advém do facto de estarmos perante uma situação qualificável como de sobresseguro, para a qual o novo regime do contrato de seguro aprovado pelo Dec. Lei nº 72/08, de 16-4, prevê uma solução específica que não passa pela declaração de anulação do contrato. Em caso de sobresseguro, a seguradora apenas responde pelo valor real do bem segurado, nos termos do art. 128º da LCS, nos termos do qual “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.

Trata-se de um regime que substituiu, nesta parte, o que se consignava no art. 435º do Cód. Comercial e que integra no direito dos seguros o princípio indemnizatório em matéria de seguro de danos que, como refere Arnaldo Costa Oliveira (Lei do Contrato de Seguro anot., Romano Martinez et allium, pág. 363), visa “atalhar o enriquecimento do segurado” e “precaver a ocorrência de sinistros, a fraude e, portanto, a desordenação social”.

Não cremos que o regime jurídico do contrato de seguro sustente, para situações como a dos autos, a total exoneração da seguradora que, além de ser contrariada pelo art. 128º, também não se extrai directamente da norma específica do art. 132º que precisamente trata dos casos de sobresseguro.

Na falta de um preceito que legitime a exoneração total da seguradora, não nos parece aceitável o recurso à analogia com o art. 133º, como é defendido por Arnaldo Costa Oliveira (ob. cit., pág. 375).

E pelas razões anteriormente referidas, também nos parece insuficiente o recurso que a recorrente pretende fazer dos arts. 24º a 26º.

Na verdade, para além da ausência de uma clara opção do legislador nesse sentido, falta-lhe o argumento histórico, já que no âmbito do que se dispunha no art. 435º do Cód. Com., já então se defendia a mera redução do valor da indemnização, como era sustentado por José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 147, e Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pág. 178.

4. No caso concreto, a A. indicou como capital do seguro para o veículo automóvel o montante de € 34.500,00, quando o seu valor, no estado em que se encontrava, não excedia € 22.474,00;

A A., através do seu marido CC, a quem confiou integralmente e sem reservas todo o processo de compra e de celebração do contrato de seguro relativo ao veículo em causa, sabia que o veículo não valia a quantia de € 34.500,00 que foi indicada no contrato.

Assim, uma vez que na data em que foi celebrado o contrato ou mesmo na data em que ocorreu o sinistro o veículo não valia mais do que € 22.474,00, é este o quantitativo que deve ser pago pela seguradora, por efeito da redução operada ao abrigo do art. 132º da LCS, em correspondência com o princípio indemnizatório contido no art. 128º, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro.

Com efeito, em situações como a dos autos, o valor da indemnização não é aferido em função do valor do capital indicado na apólice, mas tendo em conta o valor venal ou comercial do veículo.

Trata-se de solução que já no domínio da nova legislação sobre seguros foi assumida por este Supremo Tribunal nos Acs. de 24-4-12 (Rel. Mário Mendes) e de 23-1-14 (Rel. Serra Batista), em www.dgsi.pt,

III – Face ao exposto acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido que se substituiu pela condenação da R. no pagamento da quantia de € 22.474,00, com juros de mora desde a citação.

Custas da revista e nas instâncias a cargo de ambas as partes na proporção do decaimento.

Notifique.

Lisboa, 18-6-15

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Bettencourt de Faria



Fonte: http://www.dgsi.pt