SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão
PENAL
Processo

203/99.9TBVRL.P1.S1

Data do documento

20 de janeiro de 2010

Relator

Isabel Pais Martins


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TAMANHO DE LETRA              



RELEVÂNCIA


Descritores

Acidente de viação
Dano biológico
Danos futuros
Danos não patrimoniais
Danos patrimoniais
Incapacidades
Indemnização


Sumário



I - Resultando provado que a demandante, em consequência do acidente, ficou afectada com uma incapacidade permanente geral de 5%, que não a vai afectar directamente em perda de rendimentos do trabalho, não subsistem dúvidas de que sofreu um dano corporal, em sentido estrito, também chamado dano biológico.

II - A jurisprudência tem vindo, maioritariamente, a considerar o dano biológico como de cariz patrimonial (como se assinala no Ac. do STJ de 27-10-2009, Proc. n.º 560/09.0YFLSB - 1.ª), indemnizável, nos termos do art. 564.º, n.º 2, do CC.

III - Mas, como se reconhece, por exemplo, no referido Ac. do STJ, também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial: “A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade”. “E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial”.

IV - A incapacidade permanente geral de 5% de que a demandante ficou afectada não conforma um dano futuro previsível, de natureza patrimonial, mesmo na consideração da linha jurisprudencial que se apresenta dominante, quando não é concretamente previsível que tal incapacidade seja adequada a determinar consequências negativas ao nível da actividade geral ou a reflectir-se, ainda que de modo indirecto, no desempenho da sua actividade profissional ou a implicar uma maior dificuldade ou esforço no exercício de actividades profissionais ou da vida quotidiana.

V - Levando os factos provados a excluir que a incapacidade permanente geral de 5% tenha repercussões funcionais directas ou indirectas, imediatas ou longínquas, não é devida indemnização, a título de danos patrimoniais futuros, esgotando-se a sua valoração e ressarcimento em sede de dano não patrimonial.



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I

1. No processo comum, com intervenção do tribunal singular, nº 203.99.9TBVRL, do 3.º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, procedeu-se a julgamento para conhecer da acusação formulada contra o arguido AA e do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente e demandante BB contra “F... - Companhia de Seguros, S.A.”, vindo, por sentença de 26/10/2006, a ser decidido, no que, agora, importa destacar:
1.1. Quanto à acção penal
Julgar a acusação procedente, por provada, e condenar o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cento e sessenta dias de prisão, substituída por igual tempo de multa, à taxa diária de € 10,00.
1.2. Quanto ao pedido cível
Julgá-lo parcialmente procedente, por provado, e:
– Condenar a demandada “F... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à demandante BB a quantia de € 15.000,00, a título de indemnização, por danos morais, acrescida de juros de mora, computados à taxa legal, desde a data da sentença até efectivo pagamento;
– Condenar a demandada “F... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à demandante BB a quantia € 255,50, a título de indemnização, por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, computados à taxa legal, desde a data da notificação do pedido civil até efectivo pagamento;
– Absolver a demandada do demais peticionado.
2. Inconformada com essa decisão, na parte cível, dela recorreu a demandante, formulando as seguintes conclusões:
«1. A assistente vem manifestar o seu descontentamento relativamente à improcedência da sua pretensão indemnizatória, no valor de Esc. 12.619.295$00 decorrente da incapacidade permanente que ficou a padecer em consequência do acidente.
«2. Foram requeridos diversos exames médico-legais para apurar o grau de incapacidade da assistente, devido à circunstância de os resultados dos exames solicitados pelo Tribunal ao Gabinete Médico-Legal de Chaves tardarem em aparecer, protelando demasiadamente a resolução deste litígio.
«3. Os peritos médicos das Delegações do Instituto de Medicina Legal de Chaves e de Coimbra concluíram que a assistente padecia realmente de uma Incapacidade Parcial Permanente de 5% e 10%, respectivamente, sendo que tal diferença, não é, em termos médicos, de grande relevância.
«4. Não podemos desconsiderar a importância de tal atribuição, porquanto é ela que legitima o pedido da assistente, tendo em vista o ressarcimento dos danos patrimoniais que resultam dessa incapacidade permanente.
«5. A indemnização a título de danos patrimoniais justifica-se na medida em que, apesar de não perder imediatamente os seus rendimentos, a incapacidade de que padece impede-a de mais tarde realizar cabalmente a sua profissão ou paralelamente outras actividades que poderiam ser lucrativas.
«6. Acresce que a não procedência do pedido de indemnização por danos patrimoniais se estribou no facto de, aparentemente, a profissão de enfermeira não ser relevante para estes efeitos; ou seja, mesmo que tenha estas lesões concretas que lhe causam uma incapacidade permanente, por ser enfermeira, não se justifica a indemnização, como se estas não afectassem a sua actividade profissional!
«7. O entendimento da decisão do Tribunal a quo é no sentido de as lesões sofridas não terem qualquer rebate profissional enquanto enfermeira; mas poderíamos dizer o mesmo se a profissão da assistente fosse outra?
«8. Atendendo a que a assistente tem apenas 33 anos, nada a impede de querer mudar de profissão, de escolher uma outra área profissional, ver-se-á limitada pela incapacidade para sempre, seja qual for a profissão escolhida!
«9. A indemnização não é unicamente para compensar o lesado pelos rendimentos que deixou de auferir, mas serve sobretudo para ressarcir a pessoa lesada pelos danos futuros que podem vir a ter lugar, por causa das lesões sofridas, ou seja, por oportunidades de aumentar os seus rendimentos que deixará de ter.
«10. Em virtude das sequelas que lhe ficaram do acidente, o exercício da sua profissão é agora muito mais penoso, devido às lesões que sofreu no nariz e lhe afectam as vias respiratórias, propiciam a formação de crostas dolorosas, o sangramento frequente, o congestionamento constante das vias nasais, traduzindo-se num substancial aumento de esforço para respirar bem.
«11. Desde o acidente e da consolidação das lesões que dele advieram, a assistente demonstra uma maior fragilidade e está mais sujeita a sofrer infecções do tracto respiratório, o que tem vindo a acontecer, dado que adoece com muito mais facilidade.
«12. A incapacidade permanente dá sempre lugar a indemnização por danos patrimoniais: ou porque provoca uma diminuição concreta dos proventos do incapaz ou porque – não havendo essa diminuição concreta – provoca uma sobrecarga de esforço físico da lesada que se reflecte na sua capacidade de resistência produtiva, como acontece claramente com a assistente.
«13. O que se pretende é que a assistente veja ressarcidos os danos patrimoniais que, apesar de não se traduzirem numa perda imediata de remunerações, afectaram a capacidade funcional da assistente ao nível respiratório.
«14. Esta incapacidade constitui um dano permanente que ela terá de suportar ao longo da sua vida, ficando privada durante o resto da sua vida de gozar essa mesma vida com a normalidade que caracteriza as demais pessoas da sua idade e condição.
«15. A incapacidade de que a assistente sofre significa uma diminuição geral da sua performance psicomotora. Por isso, por mais pequena que seja, sempre afectará a sua capacidade de ganho e terá sempre uma repercussão na actividade laboral, tornando mais penoso o seu exercício actualmente e no futuro.
«16. Ao contrário do que foi decidido na sentença de que se recorre, atendendo a que os danos patrimoniais devido a Incapacidade Parcial Permanente são indemnizados nos termos dos artigos 562.º, 563.º e 564.º, todos do Código Civil, deve a assistente ser ressarcida em conformidade.
«17. Nesta conformidade, a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 562.º, 563.º e 564.º do Código Civil, no que concerne à indemnização por danos patrimoniais decorrentes da Incapacidade Parcial Permanente.»
3. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/07/2009, foi decidido, no que, agora, interessa, julgar procedente o recurso interposto pela demandante e, em consequência, condenar a demandada “F... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à demandante BB a quantia de vinte e cinco mil euros, a título de indemnização pela incapacidade permanente parcial sofrida, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação da demandante para contestar o pedido deduzido até efectivo e integral pagamento.
4. Desse acórdão interpõe, agora, a demandada “F... – Companhia de Seguros, S.A.” o presente recurso para este Tribunal, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
«1. Não vindo demonstrado que a IPG (que não IPP) de 5% decorrente das sequelas corporais (dano real) de que a autora é portadora tenha reflexos futuros na sua capacidade de ganho ou na progressão da sua carreira,
«2. Antes vindo provado exactamente o contrário,
«3. Não há fundamento legal, face ao disposto nos art°s 483°,1, 562° e 564°,2, do C.Civil, para a concessão à autora de qualquer indemnização por danos ou consequências patrimoniais, a esse título;
«4. Nesse sentido deve revogar-se o douto acórdão recorrido e confirmar-se a douta sentença da 1.ª Instância;
«5. Assim não se entendendo, deve reduzir-se para não mais de 10.000,00 € a indemnização concedida a esse título, mais justa e equilibrada em relação à que seria devida caso aquela IPG tivesse efectivamente reflexos na capacidade de ganho da demandante ou na progressão da sua carreira (art° 562° e 566°,3, do C.Civil).
«6. Os juros, a serem devidos, deverão reportar-se à data da fixação de indemnização, necessariamente que actualizada (art.º'566°, 2).
«7. O douto acórdão recorrido violou as disposições legais que ficam citadas.»
5. Admitido o recurso, ao mesmo não foi apresentada resposta.
6. Nesta instância, o Ministério Público apôs o seu visto no processo.
7. Não tendo sido requerida a realização da audiência (artigo 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), foi decidido, no exame preliminar, julgar o recurso em conferência (artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal).
Colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência.
Da mesma procede o presente acórdão.

II

1. À compreensão do objecto do recurso e à sua decisão interessa, ainda, o que passaremos a destacar.
1.1. A demandante deduziu pedido de indemnização civil contra a seguradora pedindo a condenação dela a pagar-lhe a quantia global de Esc. 15.670.521$00, a título de indemnização, sendo: Esc. 12.619.295$00, por danos patrimoniais decorrentes de incapacidade parcial permanente fixável em 7,5%, Esc. 51.226$00, por danos patrimoniais relativos a perdas salariais, e Esc. 3.000.000$00, por danos não patrimoniais, neles incluídos o quantum doloris, o desgosto sofrido pelos danos estéticos e a perda da funcionalidade.
1.2. Na sentença da 1.ª instância foram dados por provados os seguintes factos, que devem ter-se por definitivamente assentes:
«a) No dia 23 de Setembro de 1999, pelas 17H00, o arguido conduzia o veículo de matrícula ...-...-FN, no Itinerário Principal n.º 4 (IP4), fazendo-o no sentido Vila Real – Amarante.
«b) Ao km 80,400, local em que o traçado apresenta uma curva para a direita, atento o sentido de marcha citado, o arguido, porque imprimia ao seu veículo velocidade que não lhe permitia manobrar o mesmo com segurança e pará-lo em segurança no espaço que dispunha, perdeu o controle do mesmo.
«c) Vindo a invadir a faixa de rodagem destinada ao sentido Amarante - Vila Real, onde circulavam as viaturas de matricula ...-...-ET e ...-...-FR, esta última conduzida pela assistente BB.
«d) Por força de tal invasão da faixa destinada ao sentido contrário, o veículo conduzido pelo arguido veio a embater no veículo de matrícula ...-...-ET e de seguida no veículo conduzido pela assistente.
«e) Atenta a velocidade a que seguia e as características da via, que se encontrava molhada por força da chuva que caía, o arguido não conseguiu manobrar e imobilizar o veículo no espaço que tinha disponível e dentro da faixa de rodagem que lhe estava reservada e que visionava.
«f) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a conduta, para além de censurável, era punida por lei.
«g) O arguido sabia que estava obrigado a ter cuidado na condução de um veículo automóvel, especialmente em condições climatéricas adversas, bem como cuidado especial em adequar a velocidade às condições de circulação da via, o que não fez, imprimindo uma velocidade imprópria em face das mais elementares cautelas e às condições citadas, donde resultou o acidente descrito e as lesões na assistente.
«h) O arguido não tem antecedentes criminais nem rodoviários.
«i) Em razão do embate provocado pela condução do arguido, a assistente BB sofreu hematoma no lábio superior; ferida corto-contusa na metade direita do nariz desde a base até ao orifício nasal com sangramento abundante; ferida incisa superficial na parte central do frontal em continuidade com a anterior; pequena ferida na transição gengivo labial superior e fractura dos ossos próprios do nariz, tendo sido assistida no serviço de urgência do Hospital de Vila Real logo após o acidente, onde lhe foi efectuada limpeza, desinfecção e sutura, bem como penso.
«j) Nesse mesmo dia foi transferida para o Hospital Geral de Santo António no Porto para observação por ORL.
«k) Em 24 de Setembro de 1999 teve alta para o seu domicílio após a observação e exame por médico especialista de ORL, tendo sido informada por este da necessidade de ter de vir a ser sujeita a intervenção cirúrgica ao nariz, devido à fractura do mesmo e que esta não poderia ser realizada no imediato devido ao edema facial.
«l) Cinco dias depois voltou a recorrer ao serviço de urgência do Hospital Geral de Santo António, devido ao edema, às dores da face, tendo regressado novamente ao seu domicílio, aguardando cirurgia ao nariz.
«m) Em 24 de Novembro de 1999, passa a ser seguida no Hospital de Santa Maria no Porto, pelos serviços clínicos da Companhia de Seguros F....
«n) Por apresentar dismorfia nasal com défice estético-funcional, foi internada no Serviço de Otorrino do Hospital de Santa Maria no dia 9 de Março de 2000 e submetida nesse mesmo dia a intervenção cirúrgica ao nariz – rinoseptoplastia.
«o) A 10 de Março de 2000 teve alta hospitalar, passando a regime de consulta externa.
«p) Retomou a sua actividade profissional a 1 de Abril de 2000.
«q) A 12 de Julho de 2000, após sete meses de doença, com quarenta dias de incapacidade total para o trabalho, a assistente teve alta definitiva.
«r) Actualmente apresenta as seguintes sequelas: algumas dificuldades respiratórias decorrentes do facto de a narina direita entupir e ganhar crostas mais facilmente; cicatriz linear em V aberta, de vértice inferior, localizada na vertente nasal direita, que se inicia na porção interna da região ciliar atingindo a ponta do nariz, com o comprimento de 7cm; discreta protussão da metade esquerda da pirâmide nasal e assimetria por diminuição da abertura da janela nasal direita; hipoestesia (diminuição da sensibilidade) na asa nasal direita.
«s) Em consequência das sequelas que lhe ficaram do acidente, a assistente sofre de uma incapacidade permanente geral fixável em 5%.
«t) As sequelas descritas não ocasionam qualquer rebate profissional.
«u) A assistente sofreu as dores inerentes ao trauma inicial, ao tratamento inicial em forma de tamponamento nasal, à necessidade de ingerir alimentos triturados, ao tratamento cirúrgico efectuado e ao período de recuperação post-cirúrgico.
«v) O quantum doloris foi fixado no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
«w) À data do acidente a assistente era saudável e não apresentava nenhum defeito físico.
«x) Em consequência das sequelas de que actualmente padece e que se mostram referidas na alínea r) e em particular pelo facto de ter ficado com a cicatriz a que se alude nessa mesma alínea, a assistente sente-se triste e desgostosa.
«y) A assistente nasceu a 30 de Julho de 1973.
«z) Exerce a profissão de enfermeira, profissão esta que já exercia à data do acidente.
«aa) À data da dedução do seu pedido civil nestes autos auferia o salário líquido mensal de Esc. 179.690$00.
«bb) Durante o período de doença decorrente do acidente supra descrito, a assistente sofreu descontos na sua retribuição no montante global de Esc. 51.226$00.
«cc) A assistente continua a receber por inteiro o salário correspondente à sua categoria profissional.
«dd) E a cicatriz não a impedirá de progredir na carreira.
«ee) À data do acidente a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo tripulado pelo arguido, encontrava-se transferida para a demandada por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º 5.618.175.»
E foi dado por não provado que:
«- Em consequência das lesões sofridas no acidente, a assistente ficou dois meses incapacitada para o trabalho;
«- Quando retomou a sua actividade profissional, a 1 de Abril de 2000, padecia de uma IPP de 15%;
«- Actualmente ainda sente dores;
«- É portadora de sequelas que se traduzem numa incapacidade parcial permanente fixável em 7,5%;
«- A cicatriz mede cerca de 8cm;
«- A assistente não fazia uso do cinto de segurança, razão de ter sido projectada para a frente e ter embatido com a face no tablier do veículo, com a fractura dos ossos do nariz;
«- O arguido circulava, cuidadosamente e dentro dos limites legais;
«- A profissão que exerce obriga o arguido a conduzir todos os dias, sendo o veiculo automóvel, para si, um instrumento de trabalho;
«- Não obstante ter carta de condução há já vários anos, e conduzir todos os dias, nunca o arguido se viu envolvido em qualquer acidente, até este;
«- Imediatamente a seguir ao acidente, e na presença das autoridades que lá se deslocaram para tomar conta da ocorrência, o arguido afirmou, e apontou, a existência de óleo na estrada;
«- Foi este óleo na estrada que motivou o seu despiste, uma vez que, sem que ele pudesse prever, ou prevenir, o piso onde circulava se tornou de tal maneira escorregadio que os comandos do seu carro deixaram de obedecer;
«- Nunca o arguido negou o seu despiste, e o facto de ter sido este despiste o responsável pelos danos sofridos pelos dois outros condutores que circulavam na faixa contrária;
«- Sempre assumiu a responsabilidade que teve no acidente;
«- Atento o traçado da via, que o arguido conhecia, consciente como é, ele circulava sem imprimir ao seu veículo qualquer velocidade para além da aconselhada para aquele circunstancialismo;
«- É casado, pai de dois filhos menores e o sustento de uma casa;
«- Durante algum tempo, o arguido teve medo de pegar no carro pois, não só ele próprio saiu ferido, como também uma outra condutora, pelo que ainda hoje se penaliza.»
1.3. Na sentença da 1.ª instância a fundamentação da decisão do pedido cível é a seguinte:
«A assistente funda o seu pedido indemnizatório na responsabilidade civil por facto ilícito, atribuindo a culpa do acidente que se discute neste processo à conduta negligente do condutor do veículo de matrícula ...-...-FN, ora arguido.
«Pretende, nesta medida, que a demandada Seguradora, para quem, à data do acidente, estava transferida a responsabilidade civil pelos riscos de circulação de tal veículo, seja condenada no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência de tal sinistro, no montante global de Esc. 15.670.521$00.
«A este respeito, estabelecem as leis civis que, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, fixando-se a indemnização em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art. s 483º, 562º, 563º e 566º, todos do Cód. Civil).
«Tal dispositivo legal, portanto, tem como pressuposto um facto culposo do agente causador dos danos: “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem...fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
«No caso em análise, logrou a demandante civil demonstrar, como lhe competia – vd. art.º 487º n.º 1 do Código Civil – a culpa exclusiva do arguido na produção do acidente em causa – vd. alíneas a) a g) dos factos provados.
«Posto isto, importa agora aferir do valor da indemnização correspondente aos danos sofridos pela demandante em consequência do acidente de viação em apreço.
«O art.º 496º, n.º s 1 e 3, do Código Civil, dispõe que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal.
«Tal dispositivo legal não determina, pois, quais os danos não patrimoniais que são compensáveis, limitando-se a fixar um critério geral, que é o da gravidade dos danos.
«Os danos não patrimoniais, “como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética”, são prejuízos que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização (cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 561).
«No que respeita ao quantitativo da indemnização, que será fixado segundo critérios de equidade, há que atender à extensão e gravidade dos danos, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. (cfr. Prof. Antunes Varela, Ob. cit., 629, e Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª Ed., 525).
«No caso dos autos, para se poder aferir do quantum indemnizatório a atribuir à demandante a título de danos morais há que considerar as lesões, ferimentos e respectivas sequelas que a afectaram, e ainda afectam, em consequência do sinistro, ao período de tempo que tais lesões demandaram para curar, ao padecimento por si sofrido em consequência das mesmas e do respectivo tratamento médico e medicamentoso a que teve de se submeter, à incapacidade permanente geral decorrente das sequelas que lhe ficaram do acidente e, bem assim, à tristeza e desgosto que sente em virtude do sucedido – vd. alíneas i) a x) da matéria de facto provada.
«Tendo em conta todos esses factos e os princípios atrás enunciados, entende-se como ajustada a indemnização de €. 15.000,00, para ressarcimento dos danos em causa, valor este que se fixa tendo em consideração a data actual de prolação desta decisão.
«No que concerne aos danos patrimoniais peticionados temos a atender aos descontos que a assistente sofreu na sua retribuição durante o período de doença decorrente do acidente supra descrito e que ascendem ao valor global de €. 255,51 – vd. alínea bb) .
«Pretende também a assistente a condenação da demandada numa indemnização no valor de Esc. 12.619.295$00, decorrente da incapacidade que ficou a padecer em consequência do acidente objecto destes autos.
«Com interesse nesta matéria provou-se que em consequência das sequelas que lhe ficaram do acidente, a assistente sofre de uma incapacidade permanente geral fixável em 5% - vd. alínea s).
«Mais se apurou que as sequelas descritas não ocasionam qualquer rebate profissional, a assistente continua a receber por inteiro o salário correspondente à sua categoria profissional e a cicatriz não a impedirá de progredir na carreira – vd. alíneas t), cc) e dd).
«Ora, é para nós evidente que a assistente não vai sofrer qualquer perda na sua capacidade de ganho ou na progressão da sua carreira, razão pela qual consideramos não haver fundamento para a sua referida pretensão indemnizatória.
«Refira-se, por último que ao montante indemnizatório supra fixado a título de danos morais acrescem os respectivos juros de mora, computados à taxa legal, desde a data da presente sentença, face à operada actualização do seu valor e quanto ao montante apurado a título de danos patrimoniais os juros são devidos desde a data da notificação à demandada do pedido civil até efectivo pagamento – cfr. art.º 805º n.ºs 1 e 3 do Código Civil.»
1.4. No acórdão recorrido, atendendo-se a que «As questões suscitadas a apreciar prendem-se em averiguar se é autonomamente indemnizável a incapacidade permanente parcial resultante das sequelas sofridas em acidente de viação, mas sem que daí resulte de imediato uma diminuição de rendimentos, e em caso afirmativo a sua quantificação» fundamentou-se a decisão do provimento do recurso, como segue:
«E a resposta a esta questão é afirmativa, sendo esta uma questão Jurisprudencialmente resolvida pois como expressamente se reconhece no Ac. STJ de 30/11/06 www dgsi.pt/jstj proc 06B3622, que remete para o Ac. do STJ 12/03/2002, www.dgsi.pt /jstj proc. 02A398 se aceita que “A diminuição da capacidade de trabalho é, em si mesmo, uma perda patrimonial indemnizável, independentemente da perda imediata da retribuição salarial.” (cfr. no mesmo sentido os Acs. do STJ de 05.02.87, in BMJ 364, pág. 819 e de 17.05.1994, in CJSTJ, Ano II, Tomo II, pág. 101, Ac.s do STJ de 27.04.2004, proc. 04A1182; de 06.07.2004, proc. n.º 04B2084; de 21.09.2004, proc. n.º 04A2327, e de 23.06.2005, proc. n.º 05B1597, in www.dgsi.pt/jstj., para além dos citados pela recorrente) estando tal doutrina assumida pela Jurisprudência nacional, o que se compreende dado que a obrigação de reparação deve integrar o lesado na situação que exis­tiria se aqueles danos não tivessem ocorrido tendo por me­dida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que poder ser atendida pelo Tribunal (que é a do encerramento da audiência de discussão e julgamento - art.º. 663º 1 C.P.C.) e a que nessa data teria se não exis­tissem danos - artºs 562º, 563º, 564º e 566º C.C, e portanto todas as lesões que afectem a situação anterior são reparáveis ou in natura ou por equivalente pecuniário, e no caso elas implicam “para o lesado um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou para exercer as tarefas e actividades gerais quotidianas” - Ac. do STJ de 10.05.07, Proc. 07B1341, www.dgsi.pt.; Ac. STJ 06.07.04, Proc. 04B2084, Cons. Ferreira de Almeida, www.dgsi.pt; - ou mesmo que afectassem apenas “as actividades familiares, sociais, de lazer e desportivas do lesado”, in Ac. R.P. de 04.04.06, Des. Henrique Araújo, www.dgsi.pt/jtrp Proc. 0620599, tornando-as mais penosas, como ocorre.
«É do conhecimento geral e jurisprudencialmente também assumido que o valor indemnizatório nesta espécie de danos, não é directamente determinável e quantificável daí que seja de recorrer à equidade na determinação do "quantum" - artº 566º 3 CC - dentro dos limites que se tiverem por provados, tendo presente que a quantia encontrada deve representar um capital produtor de rendimentos que no final se extinga, capaz de cobrir aquilo que se perdeu em ordem a obter a satisfação equivalente - Ac. R.Ev. 20/10/87 CJ XII, 4, 206; Ac. R.Coimbra, 10/12/85 CJ X, 5, 34, STJ 8/6/93 CJ 93, STJ, I, II, 138, e 4/2/93 CJSTJ, 1, 128, mas “não devendo ser utilizados os parâmetros de avaliação utilizados para cálculo dos lucros cessantes, uma vez que o dano não interfere com a capacidade de produzir rendimentos” Ac. RP 4/3/08 www.dgs.pt/jtrp proc 0724890, mas um mais acentuado recurso á equidade. Cfr. também o Ac. R.P. 4/4/06 www.dgsi.pt/jtrp proc. 0620599 onde se expende que “I- O cálculo da indemnização por IPP que não se repercuta numa diminuição da capacidade de ganho, mas apenas em maior esforço do lesado, não pode servir-se das tabelas habituais, por estas levarem em conta as condições salariais actuais ou previsíveis do mesmo. II- O valor será, assim, encontrado com base na equidade e nos elementos disponíveis nos autos”
«De todo o modo na Jurisprudência Portuguesa criou-se a orienta­ção de que o capital que constituirá a indemnização deve produzir um rendimento ao juro anual (antes de 9% )- Ac. STJ 8/5/86 BMJ 357º, 396º STJ 22/5/79 BMJ 287º 292, STJ 16/5/81 BMJ 307º 242, Ac. R.Porto 6/11/90 CJ 90,5, 183 - ( depois de 7% ) - Ac. STJ 5/5/94 CJ 94, II, 2, 86, e a seguir 4% ou até inferior, face à tendência da descida, e ora de harmonização com os juros europeus, tendo também presente que o juro liquido pago pelas instituições financeiras aos depósitos a prazo oscila, e muito mais nesta actual conjuntura, cuja evolução não é previsível, nem se sabe até onde irá.
«Este critério tal como outros propostos: tabelas para formação de rendas vitalícias, dos acidentes de trabalho, de comissão de pensões, tabelas financeiras, ou o valor das pensões sociais - Ac. STJ 20/1/94 CJ 94, STJ,II,I,200 - com o próprio STJ reconhece - Ac. de 8/6/93 CJ 93, STJ,I,II, 138, e Ac. STJ de 4/12/07 www.dgsi.pt/jstj Cons. Mário Cruz onde se escreveu:
«“I. Na determinação da indemnização compensatória por danos patrimoniais futuros, as fórmulas financeiras ou tabelas de cálculo habitualmente utilizadas para a determinação do capital necessário que, diluído ao longo de tempo da vida activa e juntamente com o respectivo rendimento proporcione à vítima o rendimento perdido, não satisfazem o objectivo de indemnização reparadora, por levarem a resultados francamente insuficientes e que a realidade desmente, havendo por isso que recorrer, em último grau, à equidade.
«II. Tais fórmulas ou tabelas não contemplam a tendência de melhoria do nível de vida, a ascensão da produtividade, o aumento progressivo dos salários, as despesas que por via das incapacidades geradas o lesado vai ter que efectuar e não efectuaria se não fosse a lesão, não conta com a inflação nem com o aumento da longevidade, e parte do pressuposto que a situação profissional do lesado se manteria definitivamente estática, sem progressões na carreira, e não contempla também os danos que se projectam para além da idade de reforma, designadamente aqueles em que o lesado ainda poderia continuar a trabalhar se assim o desejasse.
«III. Tais tabelas ou fórmulas são no entanto úteis pela indicação do valor base a partir do qual a indemnização deve começar por ser aferida.”
«- não devem adoptar-se não apenas devido à sua rigidez e omissões, mas também porque não são directamente aplicáveis embora tenham o conteúdo útil de servir de orientação (Ac.R.Porto 13/4/89 CJ 89, 2, 221) tendo presente que o único critério legal é o que resulta do artº. 566º que consagra a "teoria da dife­rença" e que se procura essencialmente uma solução de equidade.
«Assim tendo em conta aquelas orientações jurisprudenciais e doutrinais, o pedido formulado e os critérios de equidade (critérios de proporção, adequação às circunstancias, objectividade e razoabilidade - D. Martins de Almeida, Manual Ac. viação, 3ª ed. pag. 110), há que atender à evolução normal da actividade e ganhos da lesada, às condições económicas e financeiras gerais da Sociedade e do Estado - Ac. STJ 15/5/86 BMJ 357º 412 - incluindo a es­tabilidade dos preços ou a inflação, o tempo provável de vida não apenas útil mas geral (dado que a situação existirá até morrer e tendo em conta a esperança de vida que ultrapassa os 75 anos) da lesada, o beneficio auferido e o seu tempo de duração, a idade da lesada, o reflexo da lesão na sua saúde, e a penosidade que acarreta até em função da sua visibilidade - na face - bem expressa na fotografia dos autos, tendo sempre presente que a quantificação da indemnização terá de alicerçar-se “em dados muito problemáticos, claramente influentes - Ac. STJ, 14/1/97, Sumários de Ac. STJ, n.º 7, Jan. de 1997, pág. 22, e todos os demais citados no citado Ac. STJ 4/12/07 supra.
«Assim tendo em conta para além do expresso, o tipo de lesão gerador da incapacidade, e a taxa desta incapacidade - 5%; o vencimento à data (demonstrativo da sua situação económica e social), a sua profissão – enfermeira que implica um contacto permanente com terceiros que da sua lesão se apercebem acarretando provavelmente uma maior penosidade psíquica, e a idade de 26 anos á data da lesão, afigura-se-nos justo e equitativo fixar a indemnização pedida na quantia de 25.000,00€ (5.000.000$00 á data).
«Não há que entrar em linha de conta com outros factores mormente se essa incapacidade foi tida em conta na fixação de outros danos, porquanto estes revestem autonomia, e os demais montantes fixados não foram postos em causa e a decisão que os fixou transitou em julgado, não podendo ser objecto de conhecimento por este Tribunal.
«Esta indemnização era a devida se tivesse sido fixada na 1ª instância, e vence juros, a contar da data de notificação do pedido cível para contestar ( artº 805º CC), à taxa legal em cada momento em vigor, até integral pagamento.»
2. A questão que constitui o objecto do recurso está em saber se à demandante é devida indemnização, a título de danos patrimoniais futuros, pela incapacidade de que ficou afectada, em consequência do acidente.
Foi, justamente, a este título que o acórdão recorrido fixou a indemnização de € 25.000,00, dando provimento ao recurso da demandante, no qual esta reagiu à decisão da 1.ª instância por não ter ressarcido “os danos patrimoniais que, apesar de não se traduzirem numa perda imediata de remunerações, afectaram a [sua] capacidade funcional”, sustentando que a incapacidade de que ficou afectada “constitui um dano permanente que ela terá de suportar ao longo da sua vida, ficando privada durante o resto da sua vida de gozar essa mesma vida com a normalidade que caracteriza as demais pessoas da sua idade e condição”, significando “uma diminuição geral da sua performance psicomotora”, pelo que, “por mais pequena que seja, sempre afectará a sua capacidade de ganho e terá sempre uma repercussão na actividade laboral, tornando mais penoso o seu exercício actualmente e no futuro”.
2.1. É de recordar, conforme foi dado por provado, que a demandante, em consequência do acidente, apresenta algumas dificuldades respiratórias decorrentes do facto de a narina direita entupir e ganhar crostas mais facilmente, cicatriz linear em V aberta, de vértice inferior, localizada na vertente nasal direita, que se inicia na porção interna da região ciliar atingindo a ponta do nariz, com o comprimento de 7cm, discreta protrusão da metade esquerda da pirâmide nasal e assimetria por diminuição da abertura da janela nasal direita, hipoestesia (diminuição da sensibilidade) na asa nasal direita [alínea r)] e que, pelas sequelas que lhe ficaram do acidente, sofre de uma incapacidade permanente geral de 5% [alínea s)], a qual não lhe ocasiona qualquer rebate profissional [alínea t)].
Foi, também, dado por provado que a demandante, para além das dores inerentes ao trauma inicial, ao tratamento cirúrgico efectuado e ao período de recuperação post-cirúrgico – sendo o “quantum doloris” fixado no grau 3 – sente-se triste e desgostosa em consequência das sequelas de que ficou a padecer, em particular pelo facto de ter ficado com a cicatriz [alínea x)].
E, ainda, se provou que a demandante exerce a profissão de enfermeira, profissão esta que já exercia à data do acidente [alínea z)], continua a receber por inteiro o salário correspondente à sua categoria profissional [alínea cc)] e a cicatriz não a impedirá de progredir na carreira [alínea dd)].
Por outro lado, não se mostram sustentadas nos factos provados as alegações da demandante, contidas no recurso da decisão da 1.ª instância, de que “o exercício da sua profissão é agora muito mais penoso, devido às lesões que sofreu no nariz e lhe afectam as vias respiratórias, propiciam a formação de crostas dolorosas, o sangramento frequente, o congestionamento constante das vias nasais, traduzindo-se num substancial aumento de esforço para respirar bem”, “demonstra uma maior fragilidade e está mais sujeita a sofrer infecções do tracto respiratório, o que tem vindo a acontecer, dado que adoece com muito mais facilidade”.
2.2. Temos, assim, que a incapacidade permanente de 5% de que a demandante ficou afectada é uma incapacidade funcional geral, ou seja, não é especificamente para o exercício da sua profissão de enfermeira.
Essa incapacidade não vai afectar a demandante, directamente, em perda de rendimentos do trabalho visto que revelam os factos provados de não ter sofrido diminuição da remuneração e de não afectação da sua progressão na carreira.
Todavia, não subsistem dúvidas de que a demandante sofreu um dano corporal, em sentido estrito, também chamado dano biológico, “consistindo este na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão” (1) .
2.2.1. A jurisprudência tem vindo, maioritariamente, a considerar o dano biológico como de cariz patrimonial (2) , indemnizável, nos termos do artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil.
Afirmando-se, repetidamente, que “a afectação da pessoa do ponto de vista funcional na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial” (3) .
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das actividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial geral, sem qualquer reflexo negativo na actividade profissional do lesado e no seu efectivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado” (4) .
2.2.2. Mas, como se reconhece, por exemplo, no já referido acórdão de 27/10/2009 (5) , também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Onde se escreveu, a propósito:
“Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos …) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
“E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
“Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
“Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
“A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
“E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”
2.2.3. Sustenta-se, ainda, que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro tertium genus de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma (6) .
A este entendimento não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial / dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes (7) se deva confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.
“Com efeito, quando se defende a atribuição de uma indemnização em consequência de tal tipo de incapacidades não é seguramente a capacidade laboral ou de ganho que fica prejudicada (atentas desde logo as incapacidades de complacência) e cuja perda se pretenda hipoteticamente ressarcir. É sabido que uma incapacidade funcional de 5%, regra geral, outra coisa não significa senão o ressarcimento, pela via indemnizatória, de uma qualquer incomodidade ou desconforto que uma lesão sofrida (de maior ou menor gravidade) deixou como marca, sem que o indivíduo se veja impossibilitado ou sequer significativamente limitado no exercício da profissão que desempenhava à data da lesão sofrida.” (8).
2.2.4. Voltando ao objecto do recurso, do que se trata é de saber se a incapacidade permanente geral de 5% de que a demandante ficou afectada conforma um dano futuro previsível, de natureza patrimonial.
Temos para nós que não, mesmo na consideração da linha jurisprudencial que se apresenta dominante, neste Tribunal.
Com efeito, a incapacidade que a demandante apresenta reduz-se a “algumas dificuldades respiratórias decorrentes do facto de a narina direita entupir e ganhar crostas mais facilmente”, pois, no mais, as sequelas – cicatriz linear em V aberta, de vértice inferior, localizada na vertente nasal direita, que se inicia na porção interna da região ciliar atingindo a ponta do nariz, com o comprimento de 7cm, discreta protrusão da metade esquerda da pirâmide nasal e assimetria por diminuição da abertura da janela nasal direita – traduzem um dano estético (âmbito em que não releva a diminuição da sensibilidade na asa nasal direita).
Ora, em rigor, não é concretamente previsível que tal incapacidade/limitação seja adequada a determinar consequências negativas ao nível da actividade geral da demandante ou a reflectir-se, ainda que de modo indirecto, no desempenho da sua actividade profissional ou a implicar, para a demandante, uma maior dificuldade ou esforço no exercício de actividades profissionais ou da vida quotidiana.
Tanto mais quanto, considerando a formação profissional da demandante e a sua idade [nasceu a 30 de Julho de 1973 (alínea y) dos factos provados)], não é razoavelmente de admitir que a demandante ainda venha a exercer ou a pretender exercer actividade profissional para a qual possa relevar negativamente a referida limitação.
2.2.5. Não se duvida de que algumas dificuldades respiratórias, provocadas por mais facilmente (do que acontece ao comum das pessoas, infere-se) a narina direita entupir e ganhar crostas, causem incómodos e mal estar à demandante.
Todavia, esse desconforto, sem repercussão funcional, poderá ter a sua sede própria de avaliação no âmbito do quantum doloris.
Com efeito, esboçam-se hoje tendências no sentido de abranger em tal conceito os sofrimentos suportados durante o período de pós-consolidação, que vão desde as dores físicas crónicas sem repercussão funcional ao sofrimento psíquico implicado pelas sequelas e incapacidades ou “handicaps” que delas resultam ou aos próprios sofrimentos e esforços desenvolvidos para que a vítima possa continuar a realizar, após a consolidação, os trabalhos ou tarefas que antes realizava de forma natural, e só se a dor física tiver repercussão funcional então é que a sede de avaliação já não será a do quantum doloris mas antes a da incapacidade permanente parcial psico-física (9).
2.2.6. As outras sequelas – a cicatriz linear em V aberta, de vértice inferior, localizada na vertente nasal direita, com início na porção interna da região ciliar atingindo a ponta do nariz e o comprimento de 7cm, a discreta protrusão da metade esquerda da pirâmide nasal e a assimetria por diminuição da abertura da janela nasal direita – afectam a imagem da demandante, para si e na projecção dela no relacionamento com os outros.
Devem, por isso, ser encaradas como um dano, que vale por si mesmo. Trata-se do chamado dano estético, correntemente catalogado como um dano de consequências não patrimoniais.
É certo que, não raras vezes, as lesões constituem um dano que é simultaneamente funcional e estético, devendo, então, ser avaliado e reparado na sua dupla vertente. Mas não é esse o caso do dano estético que das lesões resultou para a demandante.
Tendo em conta a actividade e a formação profissional da demandante não é concretamente previsível que o dano estético possa vir a ter quaisquer repercussões de natureza laboral e/ou patrimonial.
2.2.7. A apreciação do caso, no concreto âmbito dos factos dados por provados, leva a excluir que a incapacidade permanente geral de 5%, de que a demandante ficou afectada, tenha repercussões funcionais directas ou indirectas, imediatas ou longínquas.
Não se mostrando, assim, sustentada, no caso, a consideração do dano biológico como de cariz patrimonial para fundamentar a procedência do pedido de indemnização a título de danos patrimoniais futuros.
A sua valoração e ressarcimento esgota-se em sede de dano não patrimonial, como decidiu a 1.ª instância.

III

Termos em que, na procedência do recurso, revogamos o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da 1.ª instância.
Custas do recurso a cargo da demandante.
Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Janeiro de 2010
Isabel Pais Martins (relatora)
Manuel Braz

_________________

(1) João António Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 2001, p. 272.
(2) Como se assinala no acórdão deste Tribunal de 27/10/2009 (processo n.º 560/09.0YFLSB – 1.ª secção).
(3) Cfr., v.g., acórdãos deste Tribunal de 07/10/2004 (processo n.º 2970/04 – 7.ª secção), de 13/01/2005 (processo n.º 4477/04 – 7.ª secção), de 10/05/2007 (processo n.º 1341/2007 – 7.ª secção), de 25/09/2007 (processo n.º 2159/07 – 1.ª secção), de 22/01/2008 (processo n.º 4338/07 – 1.ª secção), de 27/03/2008 (processo n.º 761/08 – 7.ª secção), de 09/10/2008 (processo n.º 2686/08 – 7.ª secção), de 23/04/2009 (processo n.º 292/04.6TBVNC.S1 – 7.ª secção).
(4) Acórdão de 12/09/2006 (processo n.º 2145/06 – 1.ª secção).
(5) Cfr. nota 2.
(6) João António Álvaro Dias, ob. cit., especialmente, capítulo II, secção I.
(7) Segundo o Autor a que nos estamos a referir, a fasquia das chamadas pequenas incapacidades tem o seu tecto como referência nos 10%, sendo certo que vai fazendo caminho a ideia de que, salvo casos particularíssimos, as incapacidades até 15–20% deverão ser avaliadas e reparadas não pelos parâmetros de uma qualquer incapacidade funcional (que por regra não se verifica) mas antes no âmbito do chamado dano à saúde (cfr. pp. 116-117).
(8) Autor e ob. cit., pp. 114-115
(9) Autor e ob. cit., pp. 368-369



Fonte: http://www.dgsi.pt