TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
Acórdão
CÍVEL
Processo

315/24.2YRPRT

Data do documento

25 de março de 2025

Relator

Maria Da Luz Seabra


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RELEVÂNCIA


Descritores

Anulação de decisão arbitral
Fundamentos do pedido
Contraditório


Sumário

I - Os fundamentos de um pedido de anulação de sentença arbitral, contrariamente aos fundamentos de recurso, subsumem-se apenas e só aos vícios de natureza formal, isto é, não constituem fundamentos de anulação os erros de julgamento, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto, não podendo o tribunal estadual reapreciar o mérito da decisão proferida pelo tribunal arbitral quanto aos factos que considerou provados ou não provados, nem quanto aos meios de prova a que deu prevalência ou não, não podendo ser sindicada a decisão arbitral em termos de mérito.
II - Não se evidencia do processo arbitral tratamento desigual ou violação do princípio do contraditório se a reclamada teve oportunidade razoável de fazer valer os seus direitos de defesa antes de ter sido proferida a sentença final, por escrito e através de produção dos meios de prova que arrolou, tendo sido considerados pelo tribunal arbitral na sentença os factos por si alegados, assim como os meios de prova por si apresentados.

Processo n.315/24.2YRPRT- Anulação de Decisão Arbitral
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. Relatório
1. A..., Lda intentou Ação de Anulação de Sentença Arbitral contra AA e BB, ao abrigo do art. 46º nº 1, 2 e 3 al. a) subalíneas ii), v) e vi) e 59º da Lei nº 63/2011 de 14.12, peticionando que seja julgada procedente, por provada, a presente ação de anulação de decisão arbitral e em consequência seja anulada a sentença arbitral proferida pelo Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto no âmbito do processo nº 939/2024 intentado pelos aqui réus, e na qual foi condenada a proceder à reparação da viatura aí identificada, eliminando as desconformidades nela dadas como provadas, sustentando que tal sentença é omissa na fundamentação, tendo sido violado o dever de fundamentação previsto no art. 42º nº 3 da Lei da Arbitragem Voluntária- Lei nº 63/2011 de 14.12, assim como foram violados princípios fundamentais do processo arbitral, como o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório previstos no art. 30º da LAV.
Invocou para o efeito os fundamentos seguintes:
1. Foi a Requerente notificada por via eletrónica, a 05/08/2024, na pessoa da respetiva mandatária, da sentença arbitral proferida pelo Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, no âmbito do processo n.º 939/2024, conforme doc. 1 que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
2. Concluiu o Senhor Juiz-Árbitro pela procedência da ação e em consequência condenou a Requerente a proceder à reparação da viatura em causa nos autos, eliminado as desconformidades provadas,
3. Assim como a efetuar o reembolso à primeira Requerida do valor cobrado pelo diagnóstico realizado ao veículo, no montante de 64,71€, conforme certidão de sentença que se junta como doc. 2 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
4. Decisão com a qual não pode a Requerente deixar de discordar, porquanto a sentença arbitral é omissa na fundamentação, assim como viola princípios fundamentais do processo arbitral, conforme melhor se demonstrará.
5. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à importação, exportação, compra e venda de viaturas automóveis, suas peças e acessórios e prestação de serviços, conforme resulta da certidão permanente com o código de acesso n.º ....
6. No exercício da sua atividade comercial, a Requerente vendeu à primeira Requerida, a 30/06/2021, uma viatura Peugeot ..., de matrícula ..-QE-.., no estado de usado, pelo preço de 9.750,00€ (nove mil, setecentos e cinquenta euros) e com 24 meses de garantia.
7. Na datada venda, a referida viatura tinha seis anos e 95.554 Km.
8. Em maio de 2023, a viatura deu entrada na oficina da Requerente, com queixas ao nível da suspensão/amortecedores do veículo, sistema elétrico do vidro dianteiro do lado do condutor e ecrã tátil.
9. Realizado o diagnóstico à viatura, verificou a Requerente ser necessário substituir os amortecedores do veículo, o botão do vidro esquerdo e o ecrã tátil.
10.Notificados do diagnóstico, vieram os Requeridos solicitar a reparação da viatura em garantia.
11.Tal pretensão não foi aceite pela Requerente uma vez que em causa estavam elementos de desgaste da viatura.
12.Com efeito, a garantia legal da responsabilidade do vendedor cobre todos os componentes do veículo, com exceção daqueles que se desgastam com o seu uso regular (“material de desgaste rápido”) e peças cujo defeito tenha sido resultado de uma utilização imprudente.
13.Não concordando com a decisão da Requerente, os Requeridos apresentaram reclamação no Tribunal Arbitral adstrito ao Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto.
Da falta de fundamentação da sentença arbitral
14.Dispõe o artigo 42.º n.º 3 da LAV que “A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”.
15. Ora, analisada a sentença, constata-se que o Tribunal Arbitral indica de uma forma muito deficiente os factos que, em seu entender, não ficaram provados.
16.Com efeito indica o Senhor Juiz-Árbitro como factos dados como não provados, com relevância para a decisão da causa:
“os demais factos alegados e ainda:
A. Que as avarias provadas em “G”, resultam do desgaste inerente à utilização da viatura.
B. Que as avarias provadas em “G”, resultam de mau uso dos equipamentos, imputável aos Reclamantes.
C. Que os Reclamantes tenham aderido aos termos e condições do contrato provado em“N”
D. Que as cláusulas e condições do contrato provado em “O” tenham sido comunicas e/ou informadas aos Reclamantes”
17.A decisão é completamente omissa quanto à discriminação dos seguintes factos não provados, alegados pela Requerente na sua contestação:
Os amortecedores são uma peça exposta a desgaste pelo simples uso normal de um veículo e por isso, consumível.
Quanto ao botão do vidro esquerdo (o motor já foi substituído ao abrigo da garantia comercial) e ao ecrã multifunções táctil estão também excluídos da garantia. Como se sabe, são peças de utilização constante, dependendo o seu tempo de vida útil do cuidado e utilização adequada das mesmas pelo proprietário da viatura.
Acresce que, na data da venda, a viatura não apresentava quaisquer inconformidades/defeitos relativamente às referidas peças conforme resulta da IPO efetuada à viatura em julho de 2021 e que se junta como doc.1 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
18.Para além disso, na fundamentação da matéria de facto, a sentença descreve de uma forma muito genérica o depoimento da testemunha CC, desconsiderando e omitindo o Senhor Juiz-Árbitro partes do depoimento relevantes para a boa decisão da causa.
19.Desde logo, foi omitido o esclarecimento prestado pela referida testemunha na audiência de julgamento quanto à alegada desconformidade do ecrã tátil apresentar uma função – câmara traseira – que o veículo não possui (botão fantasma).
20.Conforme bem explicou a testemunha, não se trata de uma desconformidade. Tal função existe em todas as viaturas, mas é restrita ao equipamento que a viatura traz.
21. Por outro lado, e quanto aos amortecedores, a testemunha referiu que a Requerente analisa pneus, travões, fugas e os amortecedores antes da entrega da viatura ao cliente e que nenhuma desconformidade foi detetada aquando da venda.
22.Mais esclareceu a testemunha CC que os amortecedores são testados na IPO e na inspeção periódica ocorrida em 23/07/2021 (no mês seguinte à venda da viatura), nada foi dito pelos técnicos quanto aos amortecedores, conforme doc. 3 que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
23.Verifica-se assim que tais factos trazidos aos autos pela Requerente e confirmados pelo depoimento da testemunha indicada, não foram tidos em conta pelo Tribunal Arbitral.
Mais,
24.O Ilustre Juiz-Árbitro confunde claramente desgaste normal do bem com desconformidade/defeito.
25.Como se sabe, o desgaste normal das coisas usadas não consubstancia vício da coisa.
26.É normal e expectável que uma viatura com oito anos, apresente desgaste ao nível dos amortecedores, sem que tal consubstancie uma desconformidade.
27.Por outro lado, o botão do vidro e ecrã multifunções táctil são peças de utilização constante, dependendo o seu tempo de vida útil do cuidado e utilização adequada das mesmas pelo proprietário da viatura.
28. Neste contexto, as reparações decorrentes do natural desgaste a que um veículo está sujeito não são consideradas defeitos do mesmo.
29.Permite-se por isso à Requerente, notar que o Tribunal Arbitral, sobrepôs-se à prova produzida pelas partes, à lei, à doutrina e à jurisprudência dominante, para culminar numa decisão, que não se coaduna com o direito constituído.
30.A sentença arbitral violou assim o dever de fundamentação previsto no n.º 3 do artigo 42.º, deixando de se pronunciar sobre questões que se mostravam indispensáveis à resolução do litígio, o que fundamenta a presente anulação de sentença arbitral com base no artigo 46.º n.º 3 alínea a) subalíneas v)e vi) da LAV.
Da violação dos princípios fundamentais do procedimento arbitral
31.Conforme melhor exposto supra, o Tribunal Arbitral deixou de se pronunciar sobre questões essenciais para a boa decisão da causa e que eram suscetíveis de alterar a decisão.
32. Assim como deu voz apenas à versão dos factos apresentada nos autos pelos Requeridos, apesar dessa versão ter várias incongruências, o que evidencia uma manifesta desigualdade no tratamento das partes e na forma como as provas foram analisadas e valoradas.
33.Dispõe o artigo 30.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro- Lei da Arbitragem Voluntária- em diante LAV, sob a epígrafe “Princípios e regras do processo arbitral” que, 1-O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais: a) O demandado é citado para se defender;
b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;
c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei.
34.O Tribunal ao ignorar as provas e factos trazidos pela Requerente violou o princípio da igualdade das partes, e evidencia uma tendência para um dos pratos da balança que não se pode admitir.
35.Como, aliás, é evidenciado nos seguintes excertos da sentença arbitral:
“Aliás, sendo esta alegação de “desgaste normal dos equipamentos” um argumento que, cada vez mais, se ouve dos agentes económicos, diga-se, desde já que este argumento, não pode, sem mais, servir para afastar a responsabilização dos agentes económicos!”
“Como acima ficou dito, ser usado e, consequentemente, ter tido, por isso desgaste, não é justificação, sem mais para afastar a responsabilização dos agentes económicos”.
36.Por outro lado, ao não se pronunciar sobre os factos trazidos pela Requerente, ignorando a informação prestada pela testemunha CC, mostrou um total desrespeito pelo Princípio do Contraditório, consignado na alínea c) do n.º 1 do artigo 30.º da LAV, nomeadamente os factos que permitem concluir que as peças a substituir apresentavam desgaste normal, decorrente do uso ou utilização constante.
37.Face a todos os descritos vícios, quer ao nível do processo arbitral, quer ao nível da sentença arbitral, impõe-se a anulação da mesma com os efeitos inerentes a essa anulação.”

2. Regularmente citados os réus apresentaram oposição, impugnando os factos alegados pela requerente, e concluíram pedindo a confirmação da sentença arbitral já proferida.

3. Foi proferido despacho a requerer ao Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto a remessa do processo integral e o acesso à gravação do julgamento, tendo-nos sido remetido o processo arbitral para consulta e facultada a informação de que a audiência de julgamento não fora gravada.

4. Foi proferido despacho a dispensar a produção de prova testemunhal e por declarações de parte que requerente e requeridos haviam indicado no final dos seus articulados, por se afigurar desnecessária em face da natureza das questões suscitadas no âmbito deste processo, e após foram cumpridos os vistos legais.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria, hierarquia e território.
Não existem exceções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Questões a decidir:
-Se a decisão arbitral deve ser anulada por ter sido violado o dever de fundamentação, e se no processo arbitral foi violado o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório.
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III. Fundamentação de Facto
Com relevância para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
1. AA e BB apresentaram reclamação no Tribunal Arbitragem de Consumo, que deu origem ao processo nº 939/2024, contra A..., Lda, alegando ter-lhes sido vendido um veículo automóvel pela reclamada que no prazo de garantia apresentou várias avarias, cuja reparação solicitaram da reclamada sem êxito, tendo formulado o pedido de condenação da reclamada:
a) a reembolsar a primeira reclamante do valor cobrado pelo diagnóstico realizado ao veículo mediante comunicação de inconformidades ao abrigo do prazo de garantia legal do veículo na quantia de €64,71, assim como,
b) proceder às reparações necessárias no automóvel estimadas num custo de €2.103,15 a expensas suas;
2. O processo seguiu para a fase de julgamento, tendo sido notificadas as partes da data de realização da audiência de julgamento, bem como da possibilidade de apresentarem prova testemunhal, assim como a reclamada da possibilidade de apresentação de contestação;
3. A reclamada apresentou contestação, sustentando estarem excluídas da garantia as desconformidades apontadas pelos reclamante ao veículo que lhes havia sido por ela vendido, por resultarem do desgaste inerente à utilização da viatura;
4. Ambas as partes apresentaram prova documental, tendo a reclamada apresentado prova testemunhal;
5. Não tendo sido possível a conciliação entre as partes, realizou-se a audiência de julgamento com a produção da prova arrolada por ambas as partes, a qual não foi gravada;
6. Foi proferida sentença em 3 de Agosto de 2024, na qual foi proferida a seguinte decisão:
“ Nestes termos, julga-se a presente acção procedente por provada e, em consequência:
a) condena-se a Reclamada a proceder à reparação da viatura em causa nos autos, eliminando as desconformidades acima provadas e
b) proceda ao reembolso à primeira Reclamante do valor cobrado pelo diagnóstico relaizado ao veículo, no montante de 64,71 euros.
Sem custas.
Notifique-se”;
7. No final dessa sentença foi elaborado resumo com o seguinte teor:
“A Reclamada invoca que as desconformidades provadas no processo resultam do desgaste normal de tais peças onde se manifestaram.
Sendo esta alegação um argumento que, cada vez mais, se ouve dos agentes económicos, diga-se, desde já, que este argumento, não pode, sem mais, servir para afastar a responsabilização dos agentes económicos. É que todas as peças têm o seu (normal) desgaste, pelo que, se esse argumento, sem mais, fosse suficiente par desresponsabilizar os agentes económicos, então não faria sentido existir garantia para os bens usados.
Ora, o legislador caminhou, exatamente, em sentido contrário, ao prever um prazo de garantia para os bens usados idêntico ap dos bens novos, o qual só por acordo, pode ser reduzido, nos termos previstos na lei.
Ou seja, ser usado e consequentemente ter tido, por isso, desgaste, não é justificação. Usado não significa (nem pode significar!) falta de qualidade!
O agente económico, quando vende um bem usado, tem de garantir, que, apesar do uso, o bem está em bom estado, é fiável e o consumidor pode confiar.
Deste modo, é dever do agente económico, antes de vender o bem, inspecioná-lo e aferir se este (pelo menos) durante o período da garantia legal pode ou não vir a manifestar desconformidades. Se tal se manifestar possível, o agente económico ou prepara o bem, previamente, para que a desconformidade não aconteça e, depois, vende-o, ou avisa o consumidor, antes da celebração do negócio, que podem vir a manifestar-se desconformidades no bem (que deve identificar expressamente quais) e o consumidor decide, então, se quer, ou não adquirir o bem.
O facto de constar de um Certificado de Inspeção Periódica que “ A ausência de anotações de deficiências significa a conformidade do veículo com a regulamentação em vigor no momento eu que foi inspecionado”, tal significa exatamente e apenas isso- que “naquele momento”, o veículo respeita a regulamentação em vigor. O que não quer dizer que, no momento imediatamente a seguir à inspeção, o veículo não possa manifestar um problema.
As cláusulas e condições relativas ao contrato de concessão de garantia, celebrado entre a Reclamada e a B..., fazem parte de um negócio celebrado entre estas duas entidades, qua apenas a elas vincula e não a terceiros (no caso aos Reclamantes), os quais não são parte nesse acordo, nem ficou demonstrado que a ele tivessem aderido ou, sequer, que tais clausulas lhe tivessem sido comunicadas e/ou informadas aquando da compra da viatura.”
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A matéria de facto provada resulta da análise do original do processo arbitral que correu os seus termos no Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, junto aos autos por iniciativa deste Tribunal, cujos elementos mais relevantes foram também juntos com o requerimento inicial apresentado pela Autora.
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IV. Fundamentação Jurídica
A Autora pretende que seja anulada a sentença arbitral proferida em 3.08.2024 pelo Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, no âmbito do Proc. Nº 939/2024, que a condenou a proceder à reparação da viatura identificada nos autos, eliminando as desconformidades provadas, e a efectuar o reembolso à primeira Ré do valor cobrado pelo diagnóstico realizado ao veículo, fundamentando a Autora esta pretensão no art. 46º nº 1, 2 e 3, al. a) –subalíneas ii), v) e vi) e 59º da Lei nº 63/2011 de 14.12 (Lei da Arbitragem Voluntária, doravante LAV).
Alegou para o efeito que a sentença arbitral é omissa na fundamentação, assim como viola princípios fundamentais do processo arbitral.
Explicitando, a Autora intentou Ação de Anulação de Sentença Arbitral- distinto do Recurso da sentença arbitral- invocando dois vícios:
i. vício da sentença- omissão de fundamentação;
ii. vícios do processo arbitral- violação do princípio da igualdade das partes e violação do princípio do contraditório.
Ambos estão previstos como fundamentos do pedido de anulação da sentença arbitral, no art. 46º nº 3 al. a), subalíneas ii), v) e vi da LAV.
Nesse preceito legal estão enumerados, em termos taxativos, os fundamentos da ação de anulação de sentença arbitral, sendo que os fundamentos contidos na alínea a) carecem de ser alegados e provados pela parte que deduz o pedido de anulação, enquanto que os fundamentos contidos na alínea b) são de conhecimento oficioso pelo tribunal estadual.
Caso as partes não concordem com a decisão arbitral proferida podem lançar mão, em abstracto, de dois meios distintos de impugnação: a ação de anulação e o recurso, mas este último só se as partes tiverem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (art. 39º nº 4 da LAV).
Tal como escreve Manuel Pereira Barrocas, “É muito importante observar, face aos fundamentos tipificados da ação de anulação e ao facto de não existir recurso da sentença arbitral para os tribunais estaduais, salvo quando as partes nisso tenham acordado expressamente (artigo 39º, número 4.), que a interpretação ou aplicação erradas ou a não observância de uma norma legal, imperativa ou supletiva, não constitui, só por si, fundamento de anulação de uma sentença arbitral. Este efeito anulatório só pode ser obtido desde que seja pertinente e provado qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46º, número 3.
(…) Em nenhum caso em arbitragem, seja em processo de anulação da sentença arbitral ou noutro, com exceção do recurso (…) o tribunal estadual pode conhecer do mérito da questão ou das questões decididas pelo tribunal arbitral.
Apenas está legalmente autorizado a anular a sentença arbitral e nada mais do que isso.
(…) Não pode em tudo o mais, ou seja, no que diz respeito à fundamentação e ao sentido útil da decisão de mérito, mesmo que seja errada a interpretação dos factos e errados os fundamentos jurídicos ou as expressões utilizadas.”[1]
Igual entendimento perfilha Rui Ferreira, que defende que, “(…) através de uma acção de anulação, os tribunais estaduais podem, num segundo momento, verificar se foram cumpridas as regras do processo equitativo e justo e se não ocorreram nulidades durante o processo arbitral, não podendo, porém, sindicar o mérito da decisão proferida; (…)pelo que a acção de anulação se destina a assegurar apenas o controlo da legalidade formal da decisão proferida, estando a apreciação do mérito da causa excluído. ”[2]
Vejamos, em pormenor se se verificam os fundamentos alegados pela Autora, cuja prova lhe competia.
Falta de fundamentação da sentença arbitral
A propósito do vício que é assacado à sentença arbitral propriamente dita- falta de fundamentação- a Autora convocou o art. 42º nº 3 da LAV segundo o qual “a sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41º.”
E alicerçou essa falta de fundamentação da sentença nos seguintes argumentos:
-indicação muito deficiente dos factos que não ficaram provados;
-completa omissão quanto à discriminação de factos por si alegados na contestação: os amortecedores são uma peça exposta a desgaste pelo simples uso normal de um veículo e por isso, consumível; quanto ao botão do vidro esquerdo (o motor já foi substituído ao abrigo da garantia comercial) e ao ecrã multifunções táctil estão também excluídos da garantia porque são peças de utilização constante, dependendo o seu tempo de vida útil do cuidado e utilização adequada das mesmas pelo proprietário da viatura; na data da venda, a viatura não apresentava quaisquer inconformidades/defeitos relativamente às referidas peças conforme resulta da IPO efetuada à viatura em julho de 2021;
-descrição muito genérica do depoimento da testemunha CC, desconsiderando e omitindo o Senhor Juiz-Árbitro partes do depoimento relevantes para a boa decisão da causa: foi omitido o esclarecimento prestado pela referida testemunha na audiência de julgamento quanto à alegada desconformidade do ecrã tátil apresentar uma função – câmara traseira – que o veículo não possui (botão fantasma), porque tal função é restrita ao equipamento que a viatura traz; quanto aos amortecedores, a testemunha referiu que a Requerente analisa pneus, travões, fugas e os amortecedores antes da entrega da viatura ao cliente e que nenhuma desconformidade foi detetada aquando da venda; mais esclareceu a testemunha CC que os amortecedores são testados na IPO e na inspeção periódica ocorrida em 23/07/2021 (no mês seguinte à venda da viatura), nada foi dito pelos técnicos quanto aos amortecedores.
-o Juiz-Árbitro confundiu desgaste normal do bem com desconformidade/defeito e sobrepôs-se à prova produzida pelas partes, à lei, à doutrina e à jurisprudência dominante, para culminar numa decisão, que não se coaduna com o direito constituído.
Concluiu a Autora que a sentença arbitral violou o dever de fundamentação ao deixar de se pronunciar sobre questões que se mostravam indispensáveis à resolução do litígio, o que consubstancia fundamento de anulação da sentença arbitral com base no artigo 46.º n.º 3 alínea a) subalíneas v) e vi) da LAV.
O art. 46º nº 3, al. a) subalíneas v) e vi) da LAV diz-nos que a sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar (v)) ou se a sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos nºs 1 e 3 do artigo 42º, estando mais uma vez referenciada neste ultimo preceito legal a apontada necessária fundamentação.
Acontece que os fundamentos de um pedido de anulação de sentença arbitral, contrariamente aos fundamentos de recurso, subsumem-se apenas e só aos vícios de natureza formal, isto é, não constituem fundamentos de anulação os erros de julgamento, quer em matéria de direito, quer em matéria de facto, não podendo o tribunal estadual reapreciar o mérito da decisão proferida pelo tribunal arbitral quanto aos factos que considerou provados ou não provados, nem quanto aos meios de prova a que deu prevalência ou não, não podendo ser sindicada a decisão arbitral em termos de mérito.
Ora o que a Autora pretende, apesar de invocar a falta de fundamentação da sentença arbitral, não é mais do que introduzir um pedido de reapreciação do mérito da decisão proferida pelo tribunal arbitral quanto à matéria de facto dada como provada e como não provada por com ela não concordar, pondo em causa o julgamento que foi feito por aquele tribunal quanto à valoração e desconsideração da prova testemunhal por si apresentada, apreciação que este tribunal estadual está impedido de proceder por não se estar no âmbito do recurso da decisão arbitral (meio processual de que a Autora não se socorreu por não ter sido estabelecida convenção nesse sentido).
Como de forma lapidar se decidiu no recente Ac STJ de 22.02.2024, “Na impugnação duma sentença arbitral, “apenas” se podem invocar/discutir os vícios do percurso, do processo arbitral, que levou os árbitros até à sentença, assim como, atento o disposto nas subalíneas v) e vi) da alínea a) do art. 46.º/3, se podem invocar os vícios da condenação por excesso ou defeito e a falta de fundamentação.
Pelo que, sendo taxativos os fundamentos da impugnação de uma sentença arbitral, como claramente resulta do corpo do art. 46.º/3 da LAV, não pode “aproveitar-se” a instauração de tal impugnação para invocar outros e diversos fundamentos, designadamente fundamentos respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral.
Uma sentença arbitral mal fundamentada ou erradamente fundamentada, seja de facto ou de direito, não padece das nulidades/vícios referidos nas alíneas v) e vi) do art. 46.º/3/a) da LAV.”[3]
Deste modo, os argumentos apresentados pela Autora quanto à falta de fundamentação da sentença arbitral não são válidos para o pedido de anulação pretendido.
A propósito desta temática, e em abono desta nossa posição, cita-se igualmente, entre outra, a jurisprudência vertida nos seguintes arestos: Ac STJ de 29.10.2024, Proc. Nº 1477/23.1YRLSB.S1; Ac RP de 5.03.2024 Proc, nº 319/23.3YRPRT; Ac RP de 11.12.2024, Proc. Nº 294/24.6YRPRT; Ac RE de 9.02.2023, Proc. Nº 205/22.3YREVR; Ac RC de 21.2.2018, Proc nº 194/17.6YRCBR; Ac RG 26.10.2023, Proc. Nº 28/23.2YRGMR.G1; Ac RG de 24.10.2024, Proc nº 24.10.2024, Proc. Nº 169/24.9YRGMR.G1.[4]
De todo o modo, do ponto de vista formal, a sentença arbitral está devidamente fundamentada, dela constando de forma expressa quer o elenco dos factos que foram considerados provados (alíneas A. a P.) quer o elenco dos factos que foram considerados não provados (alíneas A. a D.) com relevância para a decisão da causa, tendo sido devidamente explanada em sede de “fundamentação da matéria de facto” qual foi a prova decisiva para a formação da convicção do tribunal arbitral- documentos identificados; declarações do reclamante; depoimento das testemunhas CC e DD-, seguida da apreciação crítica dessa prova e da explicitação da motivação subjacente aos factos considerados provados e não provados (mal ou bem, não nos compete neste tipo de pretensão apreciar), culminando na apreciação da pretensão à luz do direito aplicável.
“Não se exige qualquer tipo específico de fundamentação nem se impõe que sejam expressamente considerados todos os argumentos jurídicos invocados pelas partes. A tendência jurisprudencial claramente dominante é no sentido de que o grau de fundamentação exigido seja menor do que é na prática corrente nas sentenças judiciais.
Compreende-se esta tendência: a fundamentação da sentença estadual visa, não só permitir compreender a razão da decisão, como habilitar o tribunal de recurso a controlar o modo como o tribunal “a quo” aplicou o direito substantivo e o direito processual. No caso da decisão arbitral, em que por regra não há recurso, a fundamentação deve visar apenas promover a compreensão pelas partes da razão de ser da decisão e assim possibilitar a pacificação dos conflitos. Tal bastará para garantir o cumprimento do artigo 205º, nº 1, da Constituição. Mesmo, porém, no caso de decisões arbitrais suscetíveis de recurso, a fundamentação exigida, por força deste artigo 42º, é apenas a necessária para os destinatários compreenderem o iter lógico jurídico da decisão, e não a necessária para cumprimento das normas correspondentes do Código de Processo Civil (em especial sobre prova), as quais em regra não se aplicam ao processo arbitral.
(…) Mas foi sobretudo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 2017, relatado por Lopes do Rego, que consagrou a orientação de que está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncie de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico-jurídico seguido na resolução do litígio.”[5]
O mesmo se escreveu no citado Ac RP de 5.03.2024, no qual foi sumariado que “não obstante a amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não possa ser definida por decalque do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais, devendo ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ainda assim a fundamentação deve, em qualquer caso, ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova.
Por assim ser o vício de nulidade por falta de fundamentação [art.º 46º, nº 3, al. a), vi) da LAV] da sentença arbitral-invocável através da ação de anulação-só pode ser declarado nos casos em que exista a falta absoluta de motivação. Sempre que a motivação seja deficiente deve essa deficiência ser suprida através de recurso.
Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.”
Ora no caso sob apreciação, a sentença arbitral como já acima referimos, seguiu um modelo praticamente decalcado das sentenças judiciais, respeitando de forma rigorosa e exemplar a fundamentação de facto e de direito indispensável à prolação de uma sentença isenta do vício de falta de fundamentação, não tendo inclusivamente incorrido na omissão do elenco dos factos provados e não provados, ou na omissão da análise crítica da prova que alguma jurisprudência[6] (que também nós acolhemos) considera consubstanciar violação do dever de fundamentação que determina a anulação da decisão arbitral.
A sentença arbitral sob apreciação é perfeitamente inteligível e apreensível pelas partes, dela constam os fundamentos factuais e normativos suficientes para compreensão do sentido decisório tomado pelo tribunal arbitral, tendo sido emitida pronúncia sobre todas as questões que foram colocadas pelas partes para resolução do litígio, o que acontece é que a aqui Autora discorda dos factos considerados provados e não provados que estão na base da decisão prolatada e da valoração dos meios de prova a que o tribunal procedeu, deficiência que só podia ser arguida em sede de recurso e não em sede de pedido de anulação da sentença.
Neste contexto, é de concluir pela inexistência de fundamento válido para a anulação da sentença arbitral ao abrigo do preceituado no art. 46º nº 3, al. a) subalíneas v) ou vi) da LAV.
Violação dos princípios do processo arbitral: princípio da igualdade das partes e princípio do contraditório
Sustentou a aqui Autora que foram violados princípios fundamentais do procedimento arbitral, como é o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório.
Convocou o art. 30º da LAV, que consagra os princípios e regras do processo arbitral, segundo o qual:
“1-O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:
a) O demandado é citado para se defender;
b)As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;
c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei.”
Quanto à violação do princípio da igualdade alegou a Autora que o tribunal arbitral “deu voz apenas à versão dos factos apresentada nos autos pelos Requeridos, apesar dessa versão ter várias incongruências, o que evidencia uma manifesta desigualdade no tratamento das partes e na forma como as provas foram analisadas e valoradas”, tendo o tribunal arbitral “ignorado as provas e factos trazidos pela Requerente”, “evidenciando uma tendência para um dos pratos da balança que não se pode admitir”.
Defende que tal resulta evidenciado nos seguintes excertos da sentença arbitral:
“Aliás, sendo esta alegação de “desgaste normal dos equipamentos” um argumento que, cada vez mais, se ouve dos agentes económicos, diga-se, desde já que este argumento, não pode, sem mais, servir para afastar a responsabilização dos agentes económicos!”
“Como acima ficou dito, ser usado e, consequentemente, ter tido, por isso desgaste, não é justificação, sem mais para afastar a responsabilização dos agentes económicos”.
Mais uma vez salientamos que o inconformismo da Autora recai sobre aquilo que constitui a alegação de um erro de julgamento, considerando que foi dado crédito apenas à versão dos aqui Réus, que em seu entender padece de incongruências, não tendo sido devidamente tomados em consideração factos por si alegados e a prova por si apresentada.
Ora como já salientamos anteriormente, o erro de julgamento não consubstancia fundamento válido de pedido de anulação da sentença arbitral, não se estando em sede de recurso da mesma.
Não obstante, do ponto de vista formal não se vislumbra qualquer desigualdade de tratamento das partes, uma vez que o tribunal arbitral, tal como fez consignar na decisão arbitral sob apreciação, colocou no elenco dos factos provados e dos factos não provados não apenas factos alegados pelos reclamantes, mas também factos alegados pela reclamada, como se pode aferir designadamente das alíneas N. a P. dos factos provados e mormente das alíneas A. a D. dos factos não provados.
O que sucede é que toda a argumentação factual alegada pela aqui Autora na contestação apresentada no processo arbitral foi considerada não provada, designadamente que as avarias provadas em “G” resultassem do desgaste inerente à utilização da viatura, ou que resultassem de mau uso dos equipamentos imputável aos reclamantes, e por isso, utilizando a expressão da própria Autora, o tribunal “deu voz à versão dos factos” apresentada nos autos também pela aqui Autora, só não deu foi resposta positiva a essa versão, mas fê-lo de forma expressa, motivando essa sua opção com base na apreciação da prova que perante si foi produzida.
Ambas as versões dos factos apresentadas pelas partes foram tomadas em consideração pelo tribunal, o que foi considerado pelo tribunal arbitral é que a aqui Autora não logrou fazer prova bastante dos fundamentos em que alicerçara a sua defesa- que as avarias se devessem a desgaste ou mau uso e como tal estivessem excluídas da garantia-não consubstanciando essa sua posição nada mais do que o exercício do dever de decidir em função dos factos e dos meios de prova apresentados pelas partes, tal como exposto na fundamentação da decisão em crise.
O tribunal arbitral não tratou as partes de forma desigual, limitou-se a apreciar os factos alegados por ambas as partes e a considerá-los provados ou não provados consoante o juízo crítico da prova que lhe foi apresentada por ambas as partes.
Relativamente ao alegado tratamento desigual quanto à prova, não procede a alegação da Autora de que a prova por si apresentada foi desconsiderada pois que a mesma foi devidamente ponderada em sede de motivação da sentença, na qual se faz alusão expressa ao depoimento da testemunha CC mencionando que “ este depois de identificar e descrever as várias assistências técnicas prestadas pela Reclamada ao veículo acima identificado, referindo-se à situação em causa nos autos, disse que a viatura tinha “problemas no vidro, ruído nos amortecedores e problema no ecrã.
Referindo-se ao “problema do vidro”, disse, também, que “o botão está nas exclusões da garantia” (referindo-se ao contrato provado em “O”, celebrado entre a Reclamada e a B...) e que “estas garantias são da B..., para com a A.... Se eles são assumem, a A... Não assume”.
Mais disse que, antes de vender, a Reclamada analisa “pneus”, “travões” e “fugas” e, no que aos amortecedores diz respeito, qua na inspecção periódica, ocorrida em 23/07/2021, nada foi dito pelos técnicos quanto a amortecedores.
Já quanto às invocadas desconformidades do ecrã tátil, admitiu que “há sombras no ecrã”; que o ligar e desligar não tem reparação, que tem a ver com a idade da viatura e que isso interfere com o funcionamento do GPS e Ar Condicionado; que “é uma avaria interna de um componente” e que os clientes não interagem com o interior da peça.”
A Autora, de forma capciosa, que aqui se repudia, descontextualizou um segmento da fundamentação da decisão com vista a demonstrar a alegada “tendência para um dos pratos da balança” que no seu entender evidencia a violação do princípio da igualdade das partes, fazendo a seguinte citação:
“Aliás, sendo esta alegação de “desgaste normal dos equipamentos” um argumento que, cada vez mais, se ouve dos agentes económicos, diga-se, desde já que este argumento, não pode, sem mais, servir para afastar a responsabilização dos agentes económicos!”
“Como acima ficou dito, ser usado e, consequentemente, ter tido, por isso desgaste, não é justificação, sem mais para afastar a responsabilização dos agentes económicos”.
Esqueceu-se a Autora de referir que tais considerações surgem no contexto da fundamentação de facto em que o tribunal arbitral justificava os factos que considerou não provados, tendo-o feito do seguinte modo:
“No que aos factos considerados não provados, a sua não prova resulta, nuns casos, de não se ter produzido prova quanto aos mesmos e, noutros, da circunstância de serem factos conclusivos ou matéria de direito.
É, pois, manifesto que o veículo em causa nos autos padece das desconformidades acima identificadas em “G” e tanto assim é que a Reclamada, após ter efetuado uma análise à mencionada viatura, detectou tais desconformidades, elaborando, por isso, um orçamento, no qual discriminou as peças a substituir e serviços a executar para reparar tais desconformidades, bem como o custo desses materiais e serviços.
Da prova produzida, resulta claramente (e o tribunal ficou disso convencido), que a Reclamada não nega a existência das referidas desconformidades, o que invoca é que tais desconformidades resultam do desgaste normal de tais peças e que, porque a B... não se responsabiliza por custear a reparação dessas desconformidades, com base nesse argumento a Reclamada também não assume.
Ora, a Reclamada, apesar de o alegar, não demonstrou tais factos, pelo que não se podem considerar como provados qua as desconformidades são resultado do normal desgaste das peças.”
Em suma, não se evidencia do processo arbitral qualquer tratamento desigual da aqui Autora, que teve oportunidade razoável de fazer valer os seus direitos de defesa antes de ter sido proferida a sentença final, por escrito e através de produção de prova, tendo os factos por si alegados sido considerados pelo tribunal arbitral, tal como o foram os meios de prova por si apresentados, a Autora simplesmente não logrou fazer prova dos fundamentos apresentados na sua defesa no entendimento do tribunal arbitral, juízo este que não nos cabe aqui sindicar.
Uma última palavra para realçar que a violação do princípio do contraditório alicerçada pela Autora no argumento de que o tribunal arbitral não se pronunciou sobre os factos trazidos por si e ignorou a informação prestada pela testemunha CC, nomeadamente os factos que permitem concluir que as peças a substituir apresentavam desgaste normal, decorrente do uso ou utilização constante, traduz-se na repetição dos argumentos suscitados a propósito da violação do princípio da igualdade, assim como da falta de fundamentação da sentença, já acima devidamente refutados, confundindo mais uma vez a Autora aquilo que são os vícios do processo arbitral com os erros de julgamento.
A evidência de que o tribunal arbitral se pronunciou sobre os factos alegados pela Autora na contestação apresentada em sede de reclamação arbitral e não desconsiderou o depoimento da referida testemunha por aquela apresentada resulta da fundamentação da sentença arbitral.
Não resulta do processo arbitral que não tenha sido garantida em todas as fases do processo a observância do contraditório, pelo contrário, no que à Autora diz respeito foi-lhe concedida a possibilidade de apresentar contestação, foram admitidos todos os meios de prova apresentados, tendo sido ainda aflorados os argumentos por ela apresentados, só não foram é acolhidos.
De todo o modo cumpre-nos ainda salientar que também não bastaria à Autora alegar e provar as apontadas violações aos princípios da igualdade das parte e do contraditório pois que necessário seria que também alegasse e provasse que a violação de qualquer deles teve influência decisiva na resolução do litígio, isto é, que demonstrasse que num juízo de prognose não fora aquelas violações a decisão teria sido outra, o que manifestamente não logrou demonstrar.
Assim o impõe o art. 46º nº 3 al. a) subalínea ii) da LAV, que refere que a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a parte que faz o pedido demonstrar que houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no nº 1 do artigo 30º com influência decisiva na resolução do litígio.
Na decorrência da improcedência dos fundamentos em que o pedido de anulação da sentença arbitral se baseava, a mesma vai confirmada, julgando-se esta ação improcedente.
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V. Decisão
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a presente ação de anulação de decisão arbitral proposta por A..., Lda e, em consequência, absolvem-se os réus AA e BB do pedido formulado.
Valor da ação: €2.167,81 (valor indicado na petição inicial, que não foi impugnado pelos réus).
Custas a cargo da autora.
Notifique.

Porto, 25.03.2025
Maria da Luz Seabra
João Diogo Rodrigues
Alberto Paiva Taveira

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Lei de Arbitragem Comentada, 2ª edição, pág. 179 ss
[2] Análise de Jurisprudência sobre Arbitragem, Coord Mariana França Gouveia. Ed. João Pinto-Ferreira, Almedina, 2011, pág. 202/203
[3] Proc. Nº 111/23.4YRPRT.S1, www.dgsi.pt
[4] Consultável em www. jurisprudência.pt
[5] Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, Dário Moura Vicente (Coord), 4ª edição, pág. 147/150
[6] Entre outros Ac RP de 25.11.2014, Proc. Nº 245/14.6YRPRT, www.dgsi.pt



Fonte: http://www.dgsi.pt