SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão
PENAL
Processo

06P1042

Data do documento

18 de maio de 2006

Relator

Silva Flor


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RELEVÂNCIA


Descritores

Admissibilidade de recurso
Alteração da qualificação jurídica
Direitos de defesa
Dupla conforme
Confirmação in mellius


Sumário


I - Para efeito de se aferir da admissibilidade de recurso para o STJ, não tendo o MP
impugnado a decisão, se o arguido foi acusado da prática de três crimes puníveis com pena de prisão de 2 a 10 anos e veio a ser condenado pela prática de dois crimes puníveis com pena de prisão de 1 a 8 anos, deve atender-se à imputação de crimes efectuada na condenação da 1.ª instância, pois os direitos de defesa do arguido incidem sobre a nova qualificação jurídica dos factos, mais favorável.
II - Tudo se passa como se ab initio tivesse sido feita a imputação pela prática dos crimes pelos quais o arguido veio a ser condenado.
III - E, na verdade, tendo-se apurado, após produção de prova em audiência de julgamento, que os factos praticados integram outros crimes que a constarem da acusação não consentiriam a interposição de recurso de acórdão da 2.ª instância deve aplicar-se a mesma solução.
IV - Daí não resulta qualquer compressão inadmissível das garantias de defesa do arguido, designadamente o direito ao recurso, consagradas no art. 32.º, n.º 1, da CRP, pois o recurso para o STJ estaria também vedado se a acusação tivesse incidido sobre os factos que se vieram apurar.
V - A possibilidade de recurso tem de se aferir em função da pena aplicável em abstracto no momento processualmente relevante, olvidando realidades jurídicas ultrapassadas.
VI - Perante o quadro supradescrito, se a Relação confirmou a condenação da 1.ª instância, embora in mellius, pois reduziu as penas, verifica-se uma situação de dupla conforme, prevista no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, impeditiva de recurso para este Supremo
Tribunal.



Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Na 3.ª Vara Criminal de Lisboa, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, AA foi condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de pessoa internada, previstos e punidos pelo artigo 166.º, n.os 1, alínea c), e 2, do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 5 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão.
O arguido foi também condenado a pagar ao demandante BB a quantia de 50.000 €, acrescida de juros à taxa legal contados desde a notificação para contestação do pedido de indemnização até integral pagamento.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para a Relação de Lisboa, que, por acórdão de 18-01-2006, alterou a medida das penas, reduzindo cada uma das penas parcelares para 3 anos e 6 meses de prisão e a pena única para 4 anos de prisão. Foi também alterado o valor da indemnização, que foi reduzido para 25.000 €.
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal.
O Ministério Público junto da Relação de Lisboa respondeu à motivação do recurso, tendo, além do mais, levantado a questão prévia da sua inadmissibilidade, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, em virtude de se dever atender à moldura penal de cada um dos crimes e de o acórdão recorrido ter confirmado a condenação do arguido, apenas com divergência no quantum punitivo.
O demandante respondeu pronunciando-se pelo não provimento do recurso.
Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, aquando da vista a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer também no sentido da inadmissibilidade do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do mesmo diploma, o recorrente respondeu, dizendo em síntese:
─ Foi acusado pelo Ministério Público da prática de três crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, em concurso aparente com três crimes de abuso sexual de pessoa internada, previstos e punidos pelo artigo 166.º, n.os 1 e 2;
─ A pena aplicável pela prática do crime de pessoa incapaz de resistência é de prisão de 2 a 10 anos e a aplicável pela prática do crime de abuso sexual de pessoa internada é de prisão de 1 a 8 anos;
─ O recorrente foi condenado pela prática de 2 crimes de abuso sexual de pessoa internada;
─ Não houve acórdão da Relação que confirmasse decisão da 1.ª instância em processo por crime a que seria aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
─ Improcede assim a tese do Ministério Público sobre a inadmissibilidade do recurso.
No exame preliminar o relator expendeu que o recurso deve ser rejeitado em conferência, por ser inadmissível recurso do acórdão da Relação.
Colhidos os vistos e vindo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. Está em causa a questão da inadmissibilidade do recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Nos termos deste preceito, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
O recorrente foi acusado pelo Ministério Público da prática de três crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, com prisão de 2 a 10 anos, em concurso aparente com três crimes de abuso sexual de pessoa internada, previstos e punidos pelo artigo 166.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
Na 1.ª instância, com base na factualidade provada, considerou-se que faltou o elemento objectivo do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de oferecer resistência, consistente na incapacidade da vítima em exprimir a sua vontade, bem como o elemento subjectivo, traduzido no aproveitamento por parte do arguido da situação de incapacidade do ofendido de opor resistência em função de um motivo psíquico. Daí a conclusão de que o recorrente cometera dois crimes de abuso sexual de pessoa internada, previstos e punidos no artigo 166.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código Penal, com a prisão de 1 a 8 anos.
Só o arguido recorreu dessa decisão.
A Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, reduzindo as penas parcelares e única aplicadas.
Não se controverte, para efeitos de se aferir da admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal, que se deva atender às penas parcelares, a não à moldura do concurso.
A questão consiste em saber se a circunstância de o recorrente ter sido acusado da prática de três crimes puníveis com prisão de 2 a 10 anos deve sobrepor-se à condenação pela prática de dois crimes puníveis com prisão de 1 a 8 anos.
A entender-se que se deve atender às penas correspondentes aos crimes imputados na acusação, como pretende o recorrente, tratando-se de crimes puníveis com prisão superior a 8 anos, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 432º, alínea b), do mesmo diploma, o acórdão da Relação seria recorrível.
Entendendo-se que se deve atender às penas correspondentes aos crimes pelos quais o arguido foi condenado na 1.ª instância, como sustenta o Ministério Público na Relação e neste Supremo Tribunal, porque o limite das mesmas não é não superior a 8 anos, o acórdão será irrecorrível.
Temos para nós que com a condenação na 1.ª instância, sem que o Ministério Público tenha dela recorrido, a imputação de crimes ao recorrente relevante para efeitos processuais passou a ser por crimes puníveis com prisão de 1 a 8 anos.
Deve considerar-se que houve uma convolação da acusação, sem alteração do objecto do processo, pelo que, a partir da condenação na 1.ª instância, os direitos de defesa do arguido incidem sobre a nova qualificação jurídica dos factos, mais favorável.
Como expende Damião da Cunha, em «O Caso Julgado Parcial», pg. 471, um modelo de estrutura acusatória permite que o objecto do processo possa ser «reduzido» por influência dos sujeitos processuais.
Para efeitos de recurso tudo se passa como se ab initio tivesse sido feita a imputação pela prática dos crimes de abuso sexual de pessoa internada. Se assim tivesse acontecido, não se levantavam dúvidas de que do acórdão da Relação não havia recurso para este Supremo Tribunal. Tendo-se apurado, após a produção de prova em audiência de julgamento, que os factos praticados integram outros crimes que a constarem da acusação não consentiriam a interposição de recurso de acórdão da 2.ª instância, deve aplicar-se a mesma solução.
Daí não resulta, como parece evidente, qualquer compressão inadmissível das garantias de defesa do arguido, designadamente o direito ao recurso, consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pois o recurso para o Supremo estaria também vedado se a acusação tivesse incidido sobre os factos que se vieram a apurar.
A possibilidade de recurso tem de se aferir em função da pena aplicável em abstracto no momento processualmente relevante. Deste modo, a referência no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, a «processo por crime a que seja aplicável…» tem de se entender com o sentido de crime que no momento releva para o efeito, olvidando realidades jurídicas ultrapassadas.
Em suma, é de considerar que a Relação confirmou uma decisão da 1.ª instância, proferida em processo na altura por crimes puníveis com pena de prisão não superior a 8 anos, numa situação de dupla conforme. Consequentemente, do acórdão da mesma não cabe recurso para este Supremo Tribunal.
Em situação similar assim se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 27-01-2005, proc. n.º 4316/04.
Deixa-se ainda consignado que a circunstância de ter havido uma redução de penas não afasta a dupla conforme, pois trata-se de uma alteração in mellius. Neste sentido v. acórdãos deste Supremo Tribunal de 30-10-2003, proc. n.º 2921/03, e de 19-07-2005, proc. n.º 2643/05, entre outros.
O acórdão da Relação era pois irrecorrível.
A decisão que o admitiu não vincula este Tribunal ─ artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Por força do disposto no artigo 420.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Penal, o recurso deve ser rejeitado.
III. Nestes termos, rejeitam o recurso.
O recorrente pagará 5 UCs de taxa de justiça e 4 UCs de sanção processual em conformidade com o disposto no n.º 4 daquele artigo, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 18 de Março de 2006
Silva Flor (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro



Fonte: http://www.dgsi.pt