TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
Acórdão
CÍVEL
Processo

845/21.8T8LLE-A.E1

Data do documento

9 de abril de 2025

Relator

Francisco Xavier


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RELEVÂNCIA


Descritores

Cessão de crédito
Consumidor
Habitação
Retoma do contrato
Nulidade
Execução


Sumário

Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. A cessão de créditos consiste no contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, produzindo efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.

II. A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a acção executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa acção.

III. Na execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição e construção, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, é nula a cessão de crédito se o cessionário não tiver condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o artigo 28º daquele diploma, quando ainda seja possível o exercício deste direito pelo devedor/consumidor.

Recurso de Apelação n.º 845/21.8T8LLE-A.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório

1. AA deduziu oposição à execução, por embargos, e por apenso aos autos de execução contra si e outros instaurados por Magnetiprovide Unipessoal, Lda., pedindo que se declare a ilegitimidade da exequente e, subsidiariamente, seja reduzida a quantia exequenda ao valor de € 194.779,90

2. Para tanto, invocou, em síntese: – A ilegitimidade da exequente, por não ser essa a pessoa que figura no título executivo; – A ineficácia da cessão de créditos a favor da exequente, alegando que a exequente não a demonstra, nem o notificou dessa cessão, assim como não deu o seu consentimento; e – Que o Barclays não entregou ao Embargante a última prestação do mútuo, no valor de € 12.500,00, pelo que se colocou em mora, sendo inexigíveis os juros pedidos, para além de impugnar o valor em divida como alegado pela exequente.

3. O Embargado contestou, invocando que os créditos foram validamente transmitidos e que dispõe de legitimidade para a execução, não aceitando a alega falta de realizado da última prestação do mútuo, concluindo que se encontra em dívida a quantia de € 238.162,93, pugnando pela improcedência dos embargos.

4. Realizou-se a audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador, no qual foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Procedeu-se à audiência de julgamento, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu: “… julgar totalmente improcedentes os presentes embargos de executado.”

5. Inconformado interpôs o executado/embargante o presente recurso, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que julgue a oposição mediante embargos procedente e, por via disso, ordene a extinção da execução, aduzindo os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:

a. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou improcedente os embargos.

b. A primeira questão (falta de notificação) é que está provado que a recorrida não notificou o recorrente da alegada cessão de créditos. Mas,

c. O tribunal a quo julgou sanada a falta de notificação prevista no artigo 583.º/1 do Cód. Civil, por considerar que a citação para a execução substitui aquela.

d. Ora a norma resultante da conjugação do disposto no artigo 583.º n.º 1 do Cód. Civil e 481.º do Cód. Proc. Civil, deve ser interpretada e aplicada no sentido de que a citação para a execução não tem os efeitos daquela notificação e, faltando esta, o cessionário não pode instaurar a execução por lhe faltar justa causa de título.

e. Outra e segunda questão (falta de documento comprovativo da cessão) é que a recorrida não faz prova alguma de ter adquirido o crédito sobre o recorrente, pois não é suficiente uma compra por atacado de vários créditos, sem concretizar as condições do negócio em cada um dos créditos.

f. O exequente tem de fazer a prova, por documento, nos termos do artigo 578.º/2 do Cód. Civil, do contrato de cessão de crédito exequendo que invoca como base da sua legitimidade processual activa, nos termos do artigo 54/1 do CPC.

g. É uma questão essencial, pois, conforme acórdão do STJ de 10.05.2021 o devedor cedido pode invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima).

h. Tampouco consta em relação ao caso concreto em que condições é que o crédito sobre o recorrente é ou foi cedido o que impede este de exercer adequadamente os seus direitos plasmados no artigo 585.º do Cód. Civil.

i. A norma extraída dos artigos 2.º/2 e 571.º/1, 572.º, 573.º/1 d 574.º/1 do Cód. Proc. Civil conjugados com os artigos 342.º/1 e 585.º do Cód. Civil, deve ser interpretada e aplicada no sentido de que o cessionário tem de provar, por documento, a cessão do crédito com enumeração de toda a factualidade subjacente ao negócio e de que deu prévio conhecimento ao devedor, sem o que carece de legitimidade para instaurar a execução.

j. A terceira questão (nulidade tout court) é a de que a cessão de créditos subjacente à presente execução é nula de nenhum efeito por consubstanciar uma verdadeira “fraude à lei”, na medida em que frustra por completo os objectivos que presidiriam à consagração do regime consagrado no Decreto-lei 74-A/2017 de 23.06. com efeito,

k. Pela cessão do crédito objecto destes autos a cessionária aqui exequente adquiriu a posição contratual da cedente Banco Barclays, e por isso o recorrente aqui executado, fica privado de no futuro de exercer os direitos conferidos pelo D.L.74-A/2017, nomeadamente o direito de retoma dos contratos.

l. E isto porque passará a estar vinculado perante uma entidade que até assume não estar obrigada a cumprir com as regras impostas por aquele diploma legal.

m. Mais ainda, a celebração da cessão em apreço nos autos cria uma maior uma maior dificuldade para o recorrente, dificuldade essa traduzida na impossibilidade de este exercer direitos que, não existindo a cessão, poderiam continuar a exercer perante a cedente, nomeadamente através da retoma dos contratos celebrados com esta última.

n. Estamos, pois, perante a previsão legal do art.º 571º, nº1 do Código Civil na qual não se admite a cessão de créditos quando a mesma é interdita por determinação da lei, lei essa que é no caso concreto, a da previsão do art.º 37º, n.º 1 e 2 do D.L. 74-A/2017.”, devendo estas normas serem interpretadas e aplicada neste sentido.

o. A quarta e última questão (excepção do não cumprimento), tem a ver com a excepção do não cumprimento do contrato, na medida em se tratando de um financiamento para aquisição/construção da habitação o Banco não concedeu a totalidade do crédito a que se obrigara.

p. Apodíctico é que um contrato sinalagmático e oneroso, ao qual de ser aplicado deve ser aplicado o regime regra da excepção do não cumprimento, prevista no artigo 428.º n.º 1 do Código Civil.

q. O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato.

r. Mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, a excepção de não cumprimento do contrato poderá ser sempre invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que deva cumprir primeiro.

s. No caso, é inquestionável que o Banco haverá de cumprir na íntegra o financiamento a que se obrigou é só depois é que se inicia o termo inicial para o cumprimento por parte do recorrente.

t. Ou seja, o pagamento das 360 prestações acordadas só se inicia após o financiamento contratado estar cumprido integralmente, assim se devendo interpretar e aplicar a norma extraída dos artigos 1142.º e 1150.º ambos do Cód. Civil.

u. Por todo o exposto, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 481.º do Cód. Proc. Civil, artigos 428.º/1, 575.º/1, 578.º/2, 583.º/1, 585.º, 142.º e 1150.º do Cód. Civil, devendo estas normas serem interpretadas e aplicadas no sentido expresso nestas conclusões.

v. A decisão recorrida devia aplicar o artigo 37º, nº1 e 2 do D.L. 74-A/2017, no sentido de o mesmo constitui, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 577.º/1 lei que impede rectius interdita a cessão de crédito para habitação.

6. Não se mostram juntas contra-alegações.

7. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

*

II – Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:

i. Da falta de notificação ao devedor da cessão de créditos e sanação com a citação;

ii. Da ineficácia da cessão por falta de documentos comprovativos;

iii. Da nulidade da cessão por fraude à lei;

iv. Da excepção do não cumprimento do contrato.

*

III – Fundamentação

A) - Os Factos

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. No exercício da sua actividade creditícia, o Barclays Bank PLC celebrou com o Embargante AA em 13/1/2010, um contrato de mútuo formalizado por “Título de compra e venda, mútuo com hipoteca” emitido pela Conservatória do Registo Predial e Comercial de ..., nos termos do qual o Barclays Bank PLC emprestou ao aqui Embargante a quantia de 225.000,00 euros- cfr. documento junto com o requerimento executivo e que aqui se dá por reproduzido.

2. No “Titulo” acima referido consta que pelo aqui Embargante foi declarado que constitui a favor do Banco hipoteca sobre o prédio adquirido - parcela de terreno para construção - bem como sobre todas as construções edificadas ou a edificar no mesmo e que a hipoteca é constituída em caução e garantia do pagamento das seguintes quantias:

a. a quantia mutuada de 75.060,00 euros, que se destina à aquisição do prédio ora hipotecado e que recebe na presente data;

b. a quantia de 149.940,00 euros, que se destina à construção e habitação própria permanente no prédio ora hipotecado e será entregue pelo Banco ao mutuário por crédito da conta de depósito à ordem do mutuário e em função da construção realizada, por tranches no valor mínimo de 12.500,00 euros cada, nada recebendo na presente data. A última tranche será libertada após apresentação ao Banco da licença de utilização.

3. No documento complementar ao titulo acima referido, consta que o capital mutuado (75.060,00 euros para a aquisição do prédio e 149.940,00 euros para a construção da habitação) seria entregue por crédito da conta de depósito à ordem do mutuário, devendo ser paga ao banco mutuante no prazo de 360 meses em prestações constantes, mensais e sucessivas, de capital e juros, vencendo-se a primeira prestação em 13/2/2010 e a última no termo do contrato, salvo ocorrendo o seu reembolso antecipado, de capital e juros (cláusulas quarta e quinta).

4. Assim, pela Embargada foram entregues ao Embargante a quantia de 75.060,00 euros referida em 2º a) e a quantia referida em 2º b), com excepção da última “tranche” no valor de 12.500,00 euros, ou seja, 136.900,00 euros.

5. A última “tranche” no valor de 12.500,00 euros referida em 2º b) não foi entregue ao Embargante por este não ter apresentado a licença de habitação.

6. Sucede que o Embargante deixou de pagar as prestações contratadas e devidas ao mutuante nos termos acima referidos, em 13/09/2012.

7. Apesar de interpelado para o respectivo pagamento, o Embargante não procedeu ao pagamento dos valores em divida.

8. Na data da instauração da execução encontrava-se em divida, a título de capital:

• relativamente ao empréstimo referido em 2º a): a quantia de €70.064,85;

• relativamente ao empréstimo referido em 2º b): a quantia de €130.907,61.

9. Sobre as quantias referidas em 8º acrescem as quantias relativas a juros à taxa de 4,000% onde se inclui a sobretaxa de mora de 3%, bem como o respectivo Imposto de Selo.

10. Por escritura pública de cessão de créditos celebrada em 31/03/2016 entre o Bankinter, S.A. e o Barclays Bank PLC, este transmitiu para o primeiro os créditos sobre o Embargante e indicados no facto 1º- cfr. documento junto com o requerimento executivo que aqui se dá por reproduzido.

11. E por escritura pública de cessão de posição contratual e cessão de créditos celerada em 1/10/2016 entre Bankinter, S.A, e a ora Embargante, aquela transmitiu para este os mesmos créditos referidos em 1º- cfr. documento junto com o requerimento executivo que aqui se dá por reproduzido.

12. Por carta expedida em 31/7/2019 a Embargada comunicou ao Embargante que resolvia por incumprimento os contratos referidos em 1º- cfr. documento junto com o requerimento executivo que aqui se dá por reproduzido.

*

A.2. E considerou-se como não provado que:

1. Que na quantia referida no facto provado 8º foi incluído o valor relativo à última prestação no empréstimo para a construção da habitação.

2. Que, sem prejuízo do que resulta dos factos provados, à data de 3/10/2018, o crédito da Embargada era apenas € 206.643,20.

3. Que o Embargante efectuou o pagamento da quantia de € 11.863,30 por conta do valor em divida à Embargada ou que, por algum modo foi reduzido o valor em divida no montante de € 11.863,30.

4. Que os créditos do Barclays Bank PLC sobre o Embargante não foram transmitidos para a Embargada.

*

B) – Apreciação do Recurso/O Direito

1. Como resulta dos autos, na execução, a exequente pretende ser ressarcida pelo executado dos montantes em dívida referentes ao contrato de mútuo, com hipoteca, que o executado celebrou, em 13/01/2010, com o então Barclays Bank PLC, cujos créditos lhe foram transmitidos por via dos contratos de cessão de créditos que identifica no requerimento executivo.

O executado deduziu oposição à execução, invocando a ilegitimidade do exequente, por não ser a pessoa que consta do título, a ineficácia da cessão de créditos a favor da exequente, alegando a falta de notificação e do seu consentimento para a cessão, e a falta de documentação, bem como a excepção do não cumprimento do contrato, questões estas que foram julgadas improcedentes na decisão recorrida, que concluiu pela improcedência dos embargos.

O embargante discorda desta decisão, dizendo que não foi notificado da cessão de créditos e que tal falta, ao contrário do decidido, não pode ter-se por sanada com a citação para acção executiva, instaurada pelo adquirente, que a cessão é ineficaz por falta de documento que a comprove, que a cessão é nula por fraude à lei, alegando, ainda, a excepção do não cumprimento do contrato.

2. No que se reporta à primeira questão, é certo que resulta do disposto no artigo n.º 1 do artigo 583º do Código Civil, “[a] cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”.

Na sentença entendeu-se que a citação na acção executiva sempre produzirá idêntico efeito ao da notificação, tornando eficaz a transmissão (por todos, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/3/2016, proc.º n.º 703/11.4TBVRS-A.E1.S1, disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt), pelo que, sendo alegada a transmissão no requerimento executivo é irrelevante a discussão quanto à prova da notificação anterior ao da instauração a execução.

Efectivamente, como se concluiu neste aresto, a cuja fundamentação se adere:

«I – A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjectiva que consiste na transferência do lado activo da relação obrigacional.

II – A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a acção executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa acção.

III – O único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil).

IV – Para protecção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC.

V – A jurisprudência reconhece ao devedor cedido o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).

VI – Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de protecção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação».

Deste modo, sendo garantidos ao devedor invocar, na sequência da citação para acção executiva, os meios de defesa geral contra o cessionário, não se vê qualquer obstáculo a que a cessão de créditos seja levada ao conhecimento do devedor por via da citação para a acção executiva movida pelo cessionário. Assim, não se justifica que, no caso, que se vá indagar se o exequente/cessionário comunicou, efectivamente, a cessão como alegou no artigo 10º da contestação dos embargos [10. De facto, no dia 30 de Outubro de 2018, o Embargante foi notificado da cessão de créditos do Banco Bankinter para a Magnetiprovide Unipessoal Lda, por carta registada com aviso de recepção, conforme documento que se juntou no requerimento executivo e que se anexa novamente. (Documento n.º 1 que se junta e por aqui se dá por integralmente reproduzido)].

3. Quanto a questão da ineficácia da cessão por falta de documento bastante, designadamente, com a indicação dos devedores e condições do crédito, também não assiste razão ao recorrente.

Senão vejamos:

O recorrente não discute a celebração dos contratos de cessão de créditos (que constam de documentos autênticos), a que se reportam os pontos 10 e 11 dos factos provados, limitando-se a alegar que dos documentos juntos não resulta a identificação dos créditos cedidos, pondo, assim, em causa a eficácia da dita cessão em relação a si.

Porém, consta da escritura de cessão de créditos que a cessão abrange os créditos e as garantias prestadas, e com a contestação dos embargos, além da cópia da carta que disse ter enviado ao executado, sob registo e com AR, em 30 de Outubro de 2018, dando conta da cessão de créditos em causa, com indicação dos números dos contratos cedidos, o exequente juntou a parte relevante do documento complementar da escritura de cessão de créditos, do qual consta a indicação dos mesmos contratos objecto da cessão, com indicação da hipoteca registada a favor do cedente Bankinter, SA., e lista dos créditos cedidos. E não existem dúvidas de que o cedente Bankinter havia adquirido, também por cessão esses mesmos créditos, o que se mostra aceite pelo executado, que juntou com os embargos os documentos, com data de 03/10/2018, referentes a pagamento parcial dos mesmos empréstimos àquele credor.

Carece, pois de fundamento a alegada ineficácia da cessão em causa.

4. Invoca também o recorrente a nulidade da cessão de créditos, alegando que os créditos em causa foram contraídos para construção de habitação própria e permanente, caindo na alçada da protecção conferida pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 2 de Junho, que estabeleceu mecanismos de protecção aos consumidores de créditos abrangidos por este diploma, que são violados por via da transmissão dos créditos para uma entidade que não é uma instituição de crédito, o que impede que no futuro seja privado do direito à retoma do contrato, sendo o negócio nulo por fraude à lei.

Vejamos:

5. Como resulta da matéria de facto apurada, o embargante é devedor de um crédito hipotecário, sendo parte para aquisição de uma parcela de terreno e outra para construção de habitação própria e permanente naquele prédio, concedido ao abrigo do regime regulador do crédito à habitação, pelo que se entende que estes créditos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de Junho, que transpôs parcialmente a Directiva 2014/17/UE, relativa a contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação, em face do dispôs no seu artigo 2º , onde se prevê:

«Artigo 2.º

Âmbito

1 - Sem prejuízo das exclusões previstas no artigo seguinte, o presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito, celebrados com consumidores:

a) Contratos de crédito para a aquisição ou construção de habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento;

b) Contratos de crédito para aquisição ou manutenção de direitos de propriedade sobre terrenos ou edifícios já existentes ou projectados;

c) Contratos de crédito que, independentemente da finalidade, estejam garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente habitualmente utilizada sobre imóveis, ou garantidos por um direito relativo a imóveis.

2 - O presente decreto-lei aplica-se também aos contratos de locação financeira de bens imóveis para habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, com excepção do disposto no n.º 3 do artigo 14.º, na alínea a) do n.º 2 e nos n.os 6 e 7 do artigo 25.º e no artigo 28.º.» (destaque nosso)

Neste diploma estão previstos certos direitos dos consumidores destes créditos, como os que se reflectem na fase da contratação, na execução e no termo do contrato, [constantes do artigo 8º e segs, integrados no capítulo III - Informação e práticas prévias à celebração do contrato de crédito; e do artigo 22º e seguintes, constantes do capítulo VI - Informação e direitos relativos aos contratos de crédito], dos quais cumpre aqui destacar:

«Artigo 27.º

Incumprimento do contrato de crédito

1 - Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o mutuante só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se cumulativamente ocorrerem as circunstâncias seguintes:

a) A falta de pagamento de três prestações sucessivas;

b) A concessão, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o consumidor proceda ao pagamento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, sem que este o faça.

2 - O incumprimento parcial da prestação não é considerado para os efeitos previstos no número anterior, desde que o consumidor proceda ao pagamento do montante em falta e dos juros de mora eventualmente devidos até ao momento da prestação seguinte.»

«Artigo 28.º

Retoma do contrato de crédito

1 - O consumidor tem direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação abrangidos pelo presente decreto-lei ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.

2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exactos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.

3 - O mutuante apenas está obrigado a aceitar a retoma do contrato duas vezes durante a respectiva vigência.» (destaque nosso)

6. Ora, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/10/2024 (proc. n.º 5920/22.9T8MAI-A.P1.S1):

«Releva em especial este último artigo que consagra um especial regime de protecção do devedor consumidor e lhe permite reverter o incumprimento (a perda do beneficio do prazo e a resolução do contrato) em momentos importantes e que podem colidir com a validade da cessão do crédito a quem não esteja autorizado ao exercício da função de concessão de crédito, por força das normas que só o permitem a certas instituições.

Nesta norma consagra-se a retoma do contrato como um direito que o consumidor pode exercer, desde que cumpridos certos requisitos, e que – em certas circunstâncias – funciona como um direito potestativo do consumidor.

Assim, o consumidor pode solicitar a retoma do contrato, sem que o credor, instituição bancária, possa obstaculizar ao direito, desde que:

- Proceda ao pagamento das prestações vencidas (sem contar com as abrangidas pelo vencimento antecipado) e não pagas;

- Proceda ao pagamento dos juros de mora e as despesas do mutuante;

- Não tenha usado desta faculdade mais do que duas vezes no decurso do plano contratual de cumprimento acordado.

Este direito pode ser exercido:

- No prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação;

- Até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores.

De salientar igualmente que a interpretação deste diploma legal deve ser feito tendo presente a Directiva 2014/17/EU, do PE e do Conselho, de 4 de Fev., que foi transposta para o direito nacional através deste mesmo diploma3 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0017).

Quer isto dizer que se o consumidor exercer estes direitos na oposição à execução quando o exequente não é uma instituição de crédito este exequente não está em condições de assegurar o cumprimento dos direitos do consumidor, porque não pode conceder crédito e a instituição de crédito que o havia concedido já não pode operacionalizar o direito que o consumidor tem por já não ser a devedora dessa obrigação de retoma perante o consumidor – e também porque já não terá esse crédito incumprido no seu balanço uma vez o cedeu a terceiro [No texto que se cita encontra-se a explicação dos motivos do recurso a esta cessão em massa e quais os benefícios que dela decorrem para o cedente – Miguel, Pestana Vasconcelos, “A venda de non performing loans a entes externos ao sistema financeiro e o dever de supervisão do Banco de Portugal”, In Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto - a.17-18 (2020-2021) - p.563-577].

Numa situação destas a admissão da cessão do crédito ao exequente que não seja instituição de crédito funcionaria como modo de “fugir” ou tornar mais difícil (impossível) o direito que a lei atribui ao devedor do crédito.

Quer isto dizer que a cessão deste crédito enquanto for possível ao devedor exercer este direito à retoma não pode ser permitida e a sua realização em contradição com a lei viola as regras gerais de cessão de créditos – art.º 577.º do CC.

“O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.”

Na situação dos presentes autos, o direito à retoma não foi invocado na fase de oposição à execução, mas não está excluída a invocação até à venda executiva dos imóveis sobre os quais incidem as hipotecas.

Em face do exposto, considera-se que as cessões dos créditos objecto da presente execução são nulas, por violação de disposição legal imperativa.»

Assim, concluiu-se neste aresto, com apoio na jurisprudência e doutrina que cita, para o qual remetemos, que:

«Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do DL. 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o art.º 28.º do DL 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.»

Em idêntico sentido concluiu-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/03/2022 (proc. n.º 7748/17.9T8PRT-B.P1), que:

« I - Através do D.L.74-A/2017 de 23 de Junho foi transposta para a ordem jurídica nacional a legislação comunitária identificada no seu preâmbulo, a qual tem como principal interesse e finalidade assegurar um nível adequado de tutela dos interesses dos consumidores que celebram crédito hipotecário.

II - Do art.º 577º, nº1 do Código Civil resultam três restrições quanto à validade da cessão: se a cessão for interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

III - No caso concreto admitir a validade e eficácia da cessão dos créditos que a Exequente celebrou com os Executados, para a Cessionária aqui Requerente, que por não ser uma instituição de crédito alega não estar sujeita ao regime do D.L.74-A/2017, consubstancia uma verdadeira “fraude à lei”, na medida em que frustra por completo os objectivos que presidiriam à consagração do regime consagrado no mesmo diploma legal.»

7. Volvendo ao caso dos autos, não se suscitam dúvidas de que os créditos em causa se destinaram à aquisição de terreno e construção de imóvel destinado à habitação própria permanente, caindo, assim, na alçada da protecção conferida pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017 (cfr. artigo 2º), o qual confere ao consumidor (qualidade que o embargante detém – cfr. artigo 4º, n.º 1, alínea d)) o direito à retoma do contrato, nos termos prescritos no artigo 28º, direito este que pode invocar em sede de oposição ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores. Porém, no caso concreto, o executado não pode vir a exercer esse direito, por a exequente não ser uma instituição de crédito, e apenas estas terem a exclusividade da actividade profissional de concessão de crédito a consumidores, como decorre do artigo 8º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto- Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

E, como se prescreve no nº 1 do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 (fraude à lei), “[s]ão nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei”, acrescentando-se no n.º 2 que “[c]onfiguram, nomeadamente, casos de fraude à lei: a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo; (…)”.

Assim, verificando-se que por via da cessão de créditos o executado/consumidor fica privado do direito de retoma do contrato de crédito para habitação, que poderia vir a exercer, como previsto no artigo 28º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, não é permitida a cessão de créditos em causa, em face do disposto no artigo 577º, n.º 1, do Código Civil, sendo sancionada com a nulidade, nos termos do n.º 1 do artigo 37º daquele diploma.

8. Nestes termos e com os demais fundamentos expressos no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2024, e jurisprudência e doutrina ali citada, para onde remetemos, procede a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida, determinando-se a extinção da execução.

Em face da solução dada ao litígio fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

Porque vencido, suportará o apelado o pagamento das custas.

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IV – Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogar a sentença recorrida, declarando-se extinta a execução.

Custas a cargo da Apelada.

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Évora, 9 de Abril 2025

Francisco Xavier

Filipe César Osório

José António Moita

(documento com assinatura electrónica)



Fonte: http://www.dgsi.pt