António Agostinho Guedes

Publicado: 13 de março de 2020

Reflexão Temática
CONSTITUCIONAL


A Constituição não proíbe a imposição de quarentena


A propósito do repatriamento dos portugueses que estavam em Wuhan, os portugueses foram confrontados com a “notícia” de que a Constituição da República Portuguesa não permite a imposição de quarentena a pessoas sem sintomas de infeção ou mesmo com sintomas de infeção.

Esta alegação é incorreta, e, até, algo disparatada.

Questão prévia: o problema não é, especificamente, de Direito Constitucional, mas sim uma pura questão metodológica de interpretação de normas jurídicas, ou seja, uma questão transversal a todos os ramos do Direito.

Em primeiro lugar, importa ter presente que para interpretar normas jurídicas não basta saber ler português; é necessário ter formação em hermenêutica jurídica, ou seja, na interpretação de normas jurídicas. Interpretar o texto de uma norma obedece a regras específicas. As regras que hoje se aplicam correspondem, em grande medida, aos esforços da ciência jurídica alemã desenvolvidos desde o início do séc. XIX e são ensinadas em todas as faculdades de Direito em Portugal (e não só, claro) logo no primeiro ano do curso.

Um texto legal não revela estados de alma ou sentimentos (como pode ser um texto literário), não descreve factos ou opiniões (como um texto jornalístico), não visa persuadir o leitor (como pode acontecer com um texto científico ou um manifesto político). O texto legal tem uma intenção normativa, manifesta uma norma jurídica, estabelece um critério de decisão de uma situação típica de conflito de interesses. É uma espécie de instrução dada pelo legislador ao juiz sobre como resolver certo tipo de conflitos.

Por outro lado, este critério de decisão expressa uma certa ideia de justiça, o resultado de uma ponderação feita pelo legislador, tantas vezes complexa, que pode envolver várias conceções de justiça, princípios jurídicos (igualdade, liberdade, segurança, confiança, proteção social, por exemplo), questões de exequibilidade prática da norma, interesses legítimos de certos grupos sociais, etc.

Isto significa que a correta aplicação de uma norma jurídica passa, necessariamente, por uma correta compreensão da mesma. Em rigor, o juiz interpreta a norma (e não o texto) manifestada no texto legal para compreender a ideia de justiça que a mesma revela e, portanto, o critério de decisão que deve aplicar na categoria de casos descrita na norma.

Se o que se exige ao intérprete é compreender a norma manifestada no texto, facilmente se conclui que a interpretação de normas nunca se pode ficar por esse texto, ou, mais corretamente, pelo sentido mais próximo do significado natural das palavas usadas no texto legal.

Por muito claro que esse texto possa parecer à primeira vista, a correta compreensão da norma obriga a, pelo menos, identificar as finalidades por ela prosseguidas, identificar os valores ou interesses que a norma visa proteger com aquele critério de decisão (a razão de ser da norma, ratio iuris ou elemento teleológico de interpretação). Se o sentido mais imediatamente sugerido pelo texto legal se revelar absurdo, manifestamente injusto ou ilógico (tendo em conta as premissas da interpretação), esse sentido deve ser imediatamente afastado, ainda que, insisto, seja o sentido mais próximo do significado natural das palavras usadas no texto legal.

Por outro lado, é também fundamental considerar o modo como a norma se articula com as demais normas do instituto em que aquela se insere, e, no limite, até a articulação da norma com outros institutos (elemento sistemático de interpretação). Por exemplo, importa verificar se o sentido extraído do texto não é contraditório com o sentido de outras normas, seja ao nível do próprio texto, seja ao nível das finalidades prosseguidas pelas normas, seja ao nível dos valores ou princípios protegidos ou concretizados na norma, respetivamente.  

Pelo menos estes dois aspetos (porque há outros) têm de ser considerados na interpretação de qualquer norma em qualquer circunstância. Se o intérprete verificar que o sentido primeiramente extraído do texto legal não é posto em causa pela consideração dos demais elementos de interpretação, então, aí sim, poderá concluir que aquele é o sentido correto, caso contrário, terá de considerar outros sentidos possíveis. Ou seja, mesmo a conclusão de que o sentido correto da norma é, afinal, aquele mais imediatamente sugerido pelo texto legal é já o resultado de um processo de compreensão que envolveu outros elementos de interpretação, que não apenas o texto.

Vejamos então como deve ser interpretado o art. 27.º da Constituição.
É verdade que o texto do n.º 3 do artigo, que estabelece em que condições alguém pode ser privado da sua liberdade, não menciona a imposição de quarentena. A única parte da norma que alude à privação de liberdade por razões de saúde menciona o “Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.

Na medida em que a restrição da liberdade é uma medida excecional e que, por isso, carece de ser devidamente justificada, o art. 27.º parece apontar para a proibição de quarentenas obrigatórias, qualquer que seja o perigo da doença, a facilidade de contágio, os efeitos sobre saúde pública, etc.

Ora, um tal resultado de interpretação seria surpreendente, pelo menos (para não dizer completamente absurdo), tendo em conta que a quarentena é um processo comumente usado para proteger a saúde pública em todo o mundo civilizado.

Qual a razão de ser da norma? O art. 27.º resulta de uma ponderação entre dois princípios fundamentais: a proteção da liberdade individual de cada pessoa, por um lado, e a necessidade de mecanismos legais e institucionais destinados a garantir a segurança de todos (proteção da integridade física e moral e da propriedade), por outro. O ponto de partida é que todas as pessoas têm direito a ver respeitada (e protegida pelo Estado) a sua liberdade individual; quaisquer limitações à liberdade de cada um carecem de ser devidamente justificadas pela necessidade de proteger o próprio ou outras pessoas e passam necessariamente por decisão judicial.    

Este é a chave da compreensão da norma: a finalidade do art. 27.º é proteger a liberdade individual até ao ponto em que a mesma represente um perigo para o próprio ou para terceiros, e a necessidade e adequação de quaisquer limitações terá, em cada caso concreto, de ser sancionada por um tribunal.

Este entendimento é confirmado por outras normas constitucionais que visam proteger a vida (art. 24.º), a integridade física das pessoas e outros direitos pessoais (arts. 25.º e 26.º) e que estabelecem mecanismos para impedir que a liberdade de cada um seja limitada para além do estritamente necessário (arts. 28.º e ss.).

Ao mesmo tempo, porém, importa ter presente que a propagação de uma doença contagiosa constitui ofensa à integridade física e, se causar a morte, constitui ofensa à vida, pelo que é punida como crime (bastando que crie um perigo grave de ofensa), com pena de prisão que pode ir de 1 a 8 anos de prisão (art. 283.º do Código Penal). Por outro lado, o art. 64.º da Constituição consagra, para todas as pessoas, o direito à proteção da saúde.     

Portanto, se se entender que o art. 27.º da Constituição proíbe a imposição de quarentena, o art. 64.º fica esvaziado de uma parte importante do seu sentido, pois não podendo impor quarentenas, o Estado fica privado de um instrumento importante de proteção da saúde pública. Por outro lado, a pessoa infetada não pode ser colocada sob quarentena, mas incorre no crime de propagação de doença contagiosa se não ficar em quarentena. Ora, estamos perante um resultado completamente ilógico, para não dizer absurdo, um resultado que não corresponde a qualquer ideia de justiça.

Isto só significa que o resultado de interpretação mais perto do texto legal, o sentido mais próximo do significado natural das palavras usadas no texto, não pode ser considerado. Não é coerente com outras normas do sistema jurídico, e por isso é juridicamente ilógico, não é um resultado razoável, e nem sequer se adequa à finalidade e intenção do próprio art. 27.º, na medida em que impediria a restrição da liberdade de pessoas que constituem um perigo para os outros. Não pode ser este o sentido correto.

Se o sentido do art. 27.º é proteger a liberdade até ao ponto em que o exercício da mesma passa a constituir um perigo para o próprio ou para as outras pessoas, e se a própria letra da lei admite a restrição da liberdade por razões de saúde, então temos de concluir que é necessário proceder a uma interpretação extensiva do art 27.º, n.º 3, da Constituição, fazendo coincidir a letra da lei com a intenção legislativa e com as finalidades prosseguidas pela norma em causa, segundo um argumento de identidade de razão: se é justificável limitar a liberdade de alguém que sofre de anomalia psíquica (por razões de saúde, portanto) para proteger a segurança das outras pessoas (além da do próprio), é igualmente justificável limitar a liberdade de alguém que, estando infetado, ou correndo o risco de estar infetado, com doença contagiosa, representa perigo grave para a integridade física ou a vida de outras pessoas.

Portanto, feita a interpretação correta do art. 27.º, de acordo com os cânones hermenêuticos há muito adquiridos pela Ciência Jurídica, conclui-se que a Constituição permite que um diploma legal consagre a quarentena obrigatória como medida adequada de proteção da segurança e saúde das pessoas.

António Agostinho Guedes
Professor de Direito. Universidade Católica Portuguesa.